
...quando for capaz...
...respire fundo...
Acorde!
Caído contra o chão, imóvel. Dor fugidia, pálpebras pesadas, os olhos tentando discernir os arredores. Ruas estreitas, prédios amontoados, um tipo de cidade movimentada. Mas não há vivalma. Um silêncio insólito pelo ar, desafiado apenas pelo uivar dos ventos.
Abraço-me, o corpo tremendo. Estou vestindo um traje excêntrico, como um uniforme – um macacão justo cinza-esverdeado, sem adereços. Botas brancas e imundas cobrem os meus pés. Luvas pretas de material sintético protegem minhas palmas, mas não os dedos – à mostra, eles estão roxos e dormentes. Nada disso oferece calor.
Um frio cortante, eu devia ter me protegido melhor. Talvez por isso as ruas vazias, sem qualquer sinal de vida. Onde estão todos? Será que estou só? Eu... mas quem, quem sou eu? Como cheguei aqui? Onde... o que é aqui? Sinto frio pela espinha, mas não é apenas o tempo.
No que fui me meter?
Não adianta esperar – pelo quê? –, preciso me mover. Preciso de respostas, descobrir ao menos onde estou. Qualquer direção é um mistério. Abraço-me com mais força, sigo em busca de abrigo.
Os ecos das botas contra o pavimento assombram as ruas e construções desertas. Janelas escuras, portas barradas, destroços de elementos desconhecidos por toda parte. Nenhum outro ser vivo. Uma lufada mais forte faz partículas excêntricas rodopiarem em torno de mim. Que não seja nada nocivo...
Não entendo a situação, tudo é novo, tudo é estranho. Sigo, pois é o que me resta. Mas o silêncio é enervante. Grito. Uma, duas, várias vezes. Alguém? Qualquer um? Responda! Olá! Uma sensação de orgulho pouco familiar me impede de gritar por ajuda. Ao menos é reconfortante perceber isso sobre mim.
Quarteirão, quarteirão, e... Um fluído viscoso, azul-escuro, frio. Recente. Não questiono sua natureza mais do que à da minha própria convicção. Brilhando contra a penumbra, o sangue traça uma rota até outra construção arruinada. Resquícios de entalhes intricados ao longo das paredes, colunas ornamentadas, degraus de pedra trincada coroados por um arco gigantesco. Parte da passagem está bloqueada, mas o sangue some no interior além.
Os símbolos e marcações estão quentes! Irradiam um tipo de energia à qual meus dedos parecem familiarizados. Eles cintilam em padrões que se alternam ao toque. Fascinante! Espere... e esse feixe luminoso, súbito, convidativo? A luz oscila e dança como chamas, mas sombras ameaçadoras a acompanham. Sinto que devo segui-la até lá dentro.
Espremer-me pelos destroços não mais fácil do que resistir à curiosidade. Ainda bem. O interior é quente e iluminado, com paredes cheias de murais vívidos, retratando cenas... alienígenas, sim, é o termo correto. Urnas tombadas, tentáculos de pedra estilhaçados, chafarizes secos. E alcovas e nichos vazios que costumavam ostentar artefatos há muito pilhados.
É o que sou? Saqueador, um ladrão de túmulos de civilizações mortas? Não faz sentido.
Aqui está tão morto quanto o mundo lá fora. Exceto pelo fragmento de cristal, flutuando imponente no centro de uma grande câmara. Um fogo pulsa dentro da estrutura bizarra, e feixes luminosos agourentos se retorcem como gavinhas. É quase hipnótico, o brilho, a energia...
Não me lembro de estar assim tão perto. Pelo menos está mais quente, mais confortável. Familiar. Uma vontade de tocar o cristal alienígena... Sim, estou aqui. Mas já não estive antes? Os dedos estranham a revolução que ocorre na superfície impecável, inicialmente gelada, mas agora quente como ferro em brasa.
Uma dor lancinante, mas não física. O caleidoscópio de imagens e sensações fere mais, é de uma violação selvagem: o amor impossível, a missão (contrato?) de resgate de algo (perdido, roubado?), a escolha dilacerante (espírito, mente, ambos?). É insuportável!
Tropeço. No chão, espremo a cabeça. As memórias dispersas coalescem no que pode ser um entendimento. Eu sou parte de... algum grupo de... caçadores? Meu nome... Não, eu sou... ou era... Aeryn. Vim para este planeta morto resgatar... algo... Mas... eu não estava só. Havia outra! Eu quase posso reconstituir o rosto dela, uma parceira, guerreira, minha companheira. Lunen.
Fomos emboscados enquanto estudávamos... creio... sim, estudávamos o cristal. Lunen me arrastou... para onde? Ou para longe de quê? Não sei onde ela está, nem o que houve com ela. Mas meu peito arde, e um pesar culposo me arranca o ar dos pulmões. Acalme-se. Respire. Levante-se.
Qualquer estilhaço de memória ainda é melhor do que memória nenhuma, não importa a dor que inflija. Meu propósito original não está mais claro agora do que quando acordei no frio. Mas isso não me impede de assumir um novo. Lunen ainda está por aqui, não sei como, mas sinto.
Tiro as luvas. O fogo dentro da estrutura parece reagir à minha aproximação. Desta vez, minhas palmas iniciam a conexão com a energia que vibra pela superfície. Do branco da minha mente, puxo qualquer resquício de lembrança de Lunen. Eu vou encontrá-la.
E o cristal vai me ajudar!
Continua…
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Curiosidades:
Fóton Carmesin é a adaptação de uma partida de Anamnesis, RPG Solo de Registro em Diário - ou journaling. Na modalidade Solo Journaling, um único jogador (dã) cria e conduz um personagem por desafios, registrando suas aventuras, pensamentos, e decisões em um “diário” - entre aspas, pois a forma de registro pode ficar à critério do jogador.
Em Anamnesis, o jogador assume o papel de um indivíduo que desperta sem qualquer memória - ele não sabe quem é, onde está, ou qual é seu propósito. Durante a partida, com o auxílio de provocações (prompts) e cartas de tarô, as lacunas do passado são preenchidas - e, talvez, levem à uma transformação no presente do personagem.
O livro de regras tem enxutas 24 páginas e, embora traga exemplos de partidas em cenários de fantasia, o jogador tem total liberdade de criação. Como já deve ter notado a essa altura, optei por uma ambientação de ficção científica - mas vai saber se outros gêneros não entrarão no meio até o final do jogo.
Vou revelando mais detalhes sobre o jogo - inclusive a razão do título pretensioso - nas próximas partes, então fica por aí!
E você? Já jogou algum RPG Solo? Gosta da modalidade de Registro de Diários ou prefere outras? Compartilha aí!