
Lorcan avistou o castelo de Lorde Davenport na linha do horizonte. Baixou uma mão calejada, deixando o sol castigar o rosto estoico. A pele bronzeada estava encharcada de suor. A outra mão descansava sobre a bolsa que continha a relíquia recuperada a tanto custo. Permitiu-se contemplar a vista do cume da colina.
Sempre o destino mais distante do que realmente estava. Mas o via claramente. O resquício de uma civilização consumida pela tragédia incompreensível, sabe-se quantas eras atrás. O castelo inabalável abrigava senhores tão ignorantes quanto os camponeses aos quais governavam, em esplendor decadente.
Entre os sangue-azul, proliferava o interesse pelas relíquias soterradas em ruínas de outrora. As canções e rumores davam conta da ameaça de males antigos, recém-despertados nos recônditos do mundo. Mas Lorcan era pragmático demais para se deixar levar por presságios apocalípticos. Reservava os pensamentos para as histórias de um passado esquecido.
Puxou a relíquia do fundo falso da bolsa. Contemplou-a sob os fortes raios de luz. Quais segredos poderiam revelar a superfície fractal, e os circuitos internos, daquele cubo energético? Lamentou não ter a chance de descobrir por si mesmo. Tinha sido contratado por Lorde Davenport apenas para recuperá-lo.
Decerto o infame e vaidoso governante não fazia ideia da sabedoria por trás de tecnologias como aquela, e nem deveria se importar. Poucos se importavam tanto quanto Lorcan. Nenhum segredo deveria permanecer enterrado. Tampouco teria valor em mãos despreparadas e incautas. Apesar disso, Lorcan não era tolo. Muitos sacrificavam-se em buscas como as suas, desesperados pelas respostas perdidas nas brumas da história. O caçador só se preocupava com o próximo passo.
Com um suspiro resignado, Lorcan iniciou a descida. Contrato era contrato, e ele honraria aquele, a despeito de seus sentimentos e crenças. Nuvens espessas cinzentas ameaçaram cobrir os picos montanhosos, mas o experiente caçador não se abalou. Nenhuma tempestade castigaria aquelas terras, por ora. Se estivesse errado - algo raro -, seguiria viagem mesmo sob chuva pesada. Os ermos não o perturbavam, apenas a civilização.
Lorcan não se sujeitaria aos confortos da sociedade, nem aos caprichos de nenhum governante ou senhorio. Nunca mais. Se o fazia agora, era por Felix, e sua barba sempre tão bem aparada. A lembrança do amigo o carregou por tempos longínquos, onde contentou-se em permanecer pelo resto da viagem.
* * * * * * *
Em silêncio calculado, Seraphina deslizava pelos vastos corredores do castelo. A seda escura do vestido sussurrava contra os pisos de pedra. Tinha as feições delicadas arranjadas em um sorriso educado. Os olhos escuros percorriam tudo, capturando cada detalhe.
Cuidado e atenção nunca eram demais para os que carregavam o fardo das Irmãs Juramentadas. Desvendar os enigmas dos antigos - e como ela ansiava por eles! - não era trivial, inconsequente ou seguro. E agora, mais uma vez, ela se equilibrava em um fio.
Deteve-se junto a uma enorme janela, e notou as nuvens espessas cinzentas se acumulando ao longe. Perguntou-se sobre o significado. Observou a agitação do pátio abaixo e do vale próximo às muralhas, depois a calmaria das colinas mais além. Até que ponto a civilização havia caído? E como reagiria à fração do conhecimento de outrora que ela tinha acumulado a tanto custo?
Toda uma era de maravilhas tecnológicas, perdida, fraturada e reduzida a um punhado de feudos em conflitos mundanos. Líderes sábios e linhagens majestosas esquecidas por herdeiros néscios, mesquinhos demais para instruir-se numa história ora envolta em mito e superstição. Tolos para quem as obras dos Precursores são pouco mais do que decorações excêntricas para suas galerias, ou armas secretas contra inimigos. Tolos como Lorde Davenport.
Seraphina nunca tinha conhecido um governante tão infame. Por outro lado, ainda era jovem e, apesar das inúmeras conexões de sua ordem, não era tão habituada às cortes quanto fingia ser. Nunca teria se dado ao desprazer de infiltrar-se entre os Davenport, não fosse pelo relato de que um mercenário tinha sido contratado há alguns dias para recuperar um artefato dos Precursores.
O informante tinha sido minucioso, e assegurou-a de que o tal Lorcan era experiente o bastante para ser vitorioso. Seraphina traçou seus próximos passos. Aguardaria o retorno do mercenário, daí o aliviaria do prêmio. As habilidades dele eram um mistério, mas decerto não seriam desafio às delas. Esperava não precisar tirar outra vida, mas se fosse obrigada, paciência; tudo era justo em sua busca para forjar uma nova e gloriosa alvorada.
As propriedades e o nível de poder daquele tesouro tecnológico ainda eram desconhecidos, mas pouco importava, pois Seraphina conhecia seu verdadeiro valor. Cresceu instruída pelas proezas dos Precursores, de seu domínio sobre a natureza por meio da ciência e das máquinas.
Por tempo demais, Seraphina se dedicou aos estudos de conhecimentos perdidos, e, enfim, ela teria a oportunidade de testemunhá-los na prática. Permitiu-se um sorrisinho maroto. Por ora, desempenharia o papel de cortesã inofensiva. Imaginou o poder imensurável, raro, e capaz de reerguer a civilização à glória desconhecida. Poder suficiente para deixar sua própria marca no mundo.
Continua…
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Curiosidades:
Bolar o título de uma história é sempre um saco. Duelo de Destinos não foi a primeira - e talvez nem a melhor - escolha, mas gostei da sonoridade e a imagem me pareceu apropriada ao tema. Os mais nerds notarão a (não tão por acaso) semelhança com Duel of the Fates, composição épica do mestre John Williams para o filme Star Wars - Episódio I - A Ameaça Fantasma.
A trama foi inspirada por uma partida de RPG de mesa que mestrei para duas pessoas. Jogamos num evento público, meio de supetão, então eu sequer tinha um cenário em mente, apenas um gancho: colocar o personagem de um “contra” o outro em meio a uma situação palaciana delicada.
Para os jogadores, o mundo fora da corte não importava muito para a partida. Mas para você, leitor, eu quis trazer uma história mais saborosa. Então, adaptei a essência do encontro para um tipo de cenário science fantasy, gênero que gosto demais.
Essa decisão não afetou em nada os eventos da partida original, pelo contrário: ela enriqueceu o histórico dos personagens dos jogadores e deu mais peso à conclusão. Qual conclusão? Bom, só acompanhando as próximas partes para saber.
E você? Já improvisou com sucesso uma partida de RPG, sem nada na mente, exceto um gancho? Como foi? Compartilha aí!