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Lorcan cruzou o imenso arco de pedra e adentrou o agitado pátio do Castelo Davenport. Sob suas botas gastas, os paralelepípedos contrastavam com a opulência extravagante ao redor. Nobres metidos em sedas, cetins e outros tecidos coloridos zanzavam a esmo, os olhares oblíquos horrorizados à vista do recém-chegado. Lorcan se sentiu deslocado.
— Thorne! – estridulou uma voz. O homem que se aproximava era alto, de barba muito bem aparada, e compleição atlética (notável mesmo sob o traje fino). Braços compridos se estendiam à frente, acompanhados por um sorriso de muitos dentes.
— Felix... – boquejou Lorcan, estendo a mão esquerda.
Felix Bannister captou a deixa. Esforçou-se para conter a euforia pelo retorno do outro.
— Sabia que teria sucesso –, respondeu ao cumprimento de acordo.
— Você me conhece bem.
Felix aquiesceu em reação à nova deixa, guiando-o para longe dos olhares consternados. Caminharam em silêncio. Décadas de camaradagem tinham eliminado a necessidade de conversa fiada – só um de muitos aspectos da relação que o tempo e a distância foram incapazes de apagar.
— O filho de milorde solicita tua presença no banquete.
Direto ao ponto. Talvez o irmão de armas não houvesse sucumbido de todo à indolência da nobreza.
— Não acho prudente –, os ombros de Lorcan enrijeceram. — Estou afastado das cortes há tanto tempo...
— Bobagem. – Felix gesticulou, como se afugentasse as preocupações. — Já estivemos à mesa com conspiradores e assassinos. Os Davenports não podem te intimidar tanto...
Lorcan hesitou, confrontando desconforto e instinto. O outro insistiu:
— Ora! Pelos velhos tempos?
Resignado, o caçador consentiu, arrancando um sorriso largo de Felix:
— Grande! Agora, sobre o propósito de teu retorno...
— Trago o prêmio. Teu senhor o terá assim que eu tiver o meu.
— Você me magoa... Já vacilei contigo?
— Jamais.
No silêncio que se seguiu à resposta lacônica, Lorcan e Felix sustentaram olhares, mas a fachada de indignação deste logo ruiu em risadas.
— Você me conhece melhor, capitão. Terá teu pagamento. Venha.
Caminharam lado a lado. Felix tagarelava: a comoção ainda tomava conta tanto da corte quanto do povo, e cresciam os rumores sobre o que o lorde-regente teria a tratar com um mercenário. Palavras, olhares, memórias, tudo ameaçava comprimir o espírito liberto do caçador – jamais mercenário! –, mas tinha a resolução e a paciência dos que abraçam a vida nos ermos.
Lorcan se concentrou nos próprios sentidos. Por mais que desfrutasse da companhia do velho aliado, nada nem ninguém o pegaria desprevenido entre aquelas muralhas.
* * * * * * *
Seraphina era uma sombra. Dissimulando naturalidade, moveu-se pelo pátio, sempre no encalço de sua presa. Como lhe fora garantido, o mestre de armas de Lorde Davenport a tinha conduzido, inadvertidamente, ao mercenário.
Lorcan Thorne era como ela o tinha imaginado: robusto, agreste, quase maltrapilho em sua couraça marcada e castigada. Um oponente formidável em confronto físico, provavelmente, mas era irrelevante. Seraphina tinha outro estilo.
A relíquia dos Precursores, ali, ao alcance das mãos. De que natureza? Poderia ser mais um repositório de informações ancestrais. Talvez uma fonte de energia inédita, cobiçada por militares, místicos, monásticos.
As possibilidades conturbavam a mente e Seraphina as afugentou. Focou na conversa que ocorria adiante. Entreouviu o bastante apenas para confirmar a reputação de tagarela de Felix Bannister.
À medida que a dupla imergiu nas entranhas de pedra do Castelo Davenport, Seraphina se viu forçada a manter-se mais e mais distante, maquinando ardis ao longo do caminho. A relíquia seria dela. Só precisava de paciência. E de um plano.
* * * * * * *
Lorcan estava abalado. A luxuosa cama de dossel, as cortinas de veludo, e os lençóis de seda zombavam dos catres duros e cobertores desgastados dos tempos de militar. Tanta opulência... Ansiou por retornar logo à simplicidade da estrada, às noites estreladas que velavam seu sono.
Pela enorme janela, contemplou parte da monstruosidade que era o Castelo Davenport. Ladeados por sebes meticulosamente aparadas, caminhos de cascalho serpenteavam por jardins exuberantes. Pouco além das muralhas, entreviu casebres agrupados, os telhados de palha brotando como cogumelos. Os campos se estendiam até as colinas e montanhas no horizonte.
Desviou os olhos para o cômodo. Em uma larga escrivaninha de mogno, pena e tinteiro. Na lareira alta, limpa, vazia, mas ainda imponente, adornos de padrões intricados, selos e brasões. No candelabro de bronze, estilhaços de cristal cintilando com a luz capturada.
Era a jaula mais luxuosa à qual Lorcan já tinha sido confinado.
Felix tinha exagerado. Talvez pensasse honrar o outrora líder de companhia, mas apenas reforçava sua inadequação. O caçador apanhou uma adaga e deixou o quarto – a relíquia seguiu junto ao corpo, fundo em um dos bolsos secretos de seu traje.
Lorcan perambulou por um labirinto de corredores, câmaras e salões. Pisoteou carpetes multicoloridos, acariciou superfícies frias de paredes, móveis, esculturas e ornamentos, examinou cortinas, estandartes, e tudo que pendesse do alto. Desvendou os segredos – e as possíveis rotas de fuga – que pôde. Nunca se era cuidadoso demais.
Durante a exploração, ele desejou concluir o negócio e retornar aos ermos de vez. Algo se agitava no fundo de sua mente. Carregava uma relíquia inestimável, e tinha certeza de que sua busca conturbada não tinha passado tão desapercebida quanto Felix teimava em afirmar.
Continua…
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Curiosidades:
Esta parte da sessão foi interessante – lembra que este conto é inspirado em uma partida de RPG? Na prática, a jogadora da Seraphina tinha intenção de roubar a relíquia ali mesmo no Pátio, aproximando-se o máximo que pudesse.
Naturalmente, ela falhou no teste. Mas eu não quis levar à cena a um conflito entre os personagens dos jogadores tão cedo na aventura. Optei por fazer a Seraphina se deixar levar pela expectativa e se distrair.
Claro que se houvesse falha crítica, não teria jeito de evitar o confronto!
O personagem Felix Bannister surgiu no ato da aventura, com base na descrição do passado militar de Lorcan por seu jogador. Inicialmente, o intermediário entre caçador e lorde-regente seria tipo Alfrid, da trilogia de filmes O Hobbit - mas bem menos maniqueísta e idiota.
Fica aí um bom exemplo de como os jogadores podem contribuir imensamente para a ficção do jogo.
Seraphina ser obrigada a se afastar no interior do castelo foi consequência de uma série de testes opostos onde o jogador do Lorcan emendou uma sequência inacreditável de bons dados - cagão! Os jogadores trocaram os dados entre si, mas não adiantou muito. Mé!
A exploração de Lorcan ocorreu em paralelo às tentativas de Seraphina de tentar identificar o quarto onde o caçador foi alojado; ambos os jogadores lidaram com pequenos desafios e interagiram com alguns servos do castelo. Como nada relevante à trama saiu daí, não achei que valia a pena ficcionar essa parte.