I
Ao Dr. Martim Francisco
Estava a expirar o adusto1 dezembro.
O sol ardia desde outubro e trouxe o furor inclemente de um castigo, secando as fontes, minando os extensos campos tristes onde o gado, extenuado e magro, levantando para o céu fulvo2 os grandes olhos mansos e resignados. Ventos áridos queimavam como o hálito da natureza febril. Pairava um cheiro forte e acre de queimadas e os dias, silenciosos e longos, de esplendor vivíssimo, pela hora média cobriam-se de uma névoa fina como a evaporação trêmula de um fogo. A alma harmoniosa e doce das florestas tinha desertado, acossada pelo flagelo ardente e era tão extraordinário o aparecimento de pássaros durante os intensos calores que o canto de uma camaxirra3 ou o trinado de uma jandaia eram tomados alegremente como presságios felizes.
O terror alarmara os sertanejos supersticiosos. Era tal o desânimo que todas as almas desesperadas, num mesmo ímpeto de fé, voltaram-se para Deus com tamanho ardor que, mesmo dos campos, à luz cáustica, entre o rumor bucólico dos rebanhos, subiam coros religiosos dos vaqueiros; e nas fontes, onde subsistia um pouco de verdura, velhas negras escravas enchiam os cântaros e, caladas, contemplativas, esquecidas do tempo, ficavam olhando o lento e escasso fluir d'água, atolando os pés na areia encharcada, onde cães morrinhentos6 ofegavam estirados, farejando, com volúpia, o frescor da umidade.
Pescadores, descendo e subindo o rio, cantavam saudações ao propício ano novo, navegando ao sabor da brisa sertaneja, leve, impregnada do cheiro quente do rastolho4. Em todos os cantos havia a mesma prece ao Senhor para que o ano que vinha fosse melhor que o velho, que entristecera tanto lar e banhara de lágrimas o rosto de muita criatura vitimada no afeto pela peste que flagelara o sertão verde e virgem, sempre sadio e viçoso, tão desbravado entretanto nesse ano bissexto expirante.
Lugares deliciosos, sítios de agradável e desejada sombra, preferidos de todos para as preguiçosas sestas do meio-dia, nem o gado procurava: murchos, definhados, arrasados pelo sol, não mais floriam — tinham sido tomados pelos mortos que ali iam dormir o último sono e, em vez das madressilvas e das rosas silvestres, ramos de flores bravas murchavam na solidão adornando de modo fúnebre os troncos das cruzes, em cujos braços secos, à tarde, ao brilhar das primeiras estrelas, rolas quérulas choravam.
Velhas senzalas ermas, escancaradas ao tempo, apodreciam sem que ninguém as procurasse, exceto o cão familiar que andava entresilhado5, ganindo sua tristeza e sua doença, saudoso e faminto, farejando os caminhos antes trilhados pelo dono e recolhendo, à noite, às cinzas frias do fogão (borralho) doméstico. E continuamente, num toque fúnebre, o sino de Santa Eulália espalhava pelo fundo sertão seus soluços de bronze.
Ao crepúsculo elevava-se do local um cheiro místico de incenso e mirra e subia de todos os tetos, como de incensários, a espiral azulada das fumaças que se faziam para afastar a peste, enquanto as velhas devotas desfiavam rosários correndo pela casa, trêmulas, ao sussurrar das orações, varrendo os cantos com a vassourinha abençoada ou com feixes de palmas que haviam coberto o caminho de Jerusalém quando o burro paciente que Jesus montava trotou nas pedras da cidade dos lírios.
Longe, no fundo violáceo do horizonte das serras, onde o sol vertia os raios derradeiros, roncavam, melancólicas e lúgubres, as guaribas6 soturnas e, de espaço a espaço, da solidão calma dos vales, em ondulação de lamento, magoada e comovida, vinha a melodia da cantiga dos tropeiros que desciam, rumo à cidade, tocando a cavalhada.
E as noites, de impassibilidade morna, caíam sobre os campos ameaçando com as estrelas o amanhã calamitoso e flamejante. Se alguém adoecia — como a esperança havia fugido de todas as almas — os parentes reuniam-se em conselho e, enquanto o doente agonizava, com os olhos ardendo de febre, fixos na imagem do crucificado, pendurada no muro, entre rosas murchas, discutia-se o lugar do enterro, lembravam-se locais à beira da fonte molhada e sempre sombreada da Saudade ou o alto de uma colina guardada por um umbuzeiro que ele tanto buscava quando era para levar ovelhas ou para pensar, afastado e só, entre as ervas de bom cheiro que florescem pelo Natal. E antes que expirasse, sua alma já estava encomendada à clemência de Deus e, para lhe envolver o corpo, a mais carinhosa das mulheres havia perfumado um lençol de linho com alecrim do campo e favas de baunilha.
Nas cabanas mortas amarelava ao tempo a palha dos milhos secos e era comum ver-se brilhar ao sol a foice de um cativo cortando o mato, de onde fugiam assustadas e atordoadas, as toutinegras tímidas. O verde e tenro arroz novo morria nos lodaçais ressecados e os papagaios chilreavam famintos nas ramadas dos ipês folhudos, pontilhados vistosamente de pequeninas flores douradas. Campeiros, por mais audaciosos que fossem, temendo o sol refugiavam-se a pastorear, protestando todos com a mesma, frase sinistra voltada à morte: "A coisa anda endiabrada por aí..."
Lentamente, uns após os outros, foram desertando todos os companheiros, de modo que o gado, acostumado a pastar nas campinas, mugia e balava esquecido no espaço estreito do velho cercado, mordendo o capim que lhe jogavam aos feixes, ruminando brotos raquíticos nascidos na terra revolvida pelos leitões, enlameada onde zumbiam moscas.
Às vezes, nas balsas que desciam o rio, impulsionadas a varejão7 por cinco ou seis negros reluzentes, de tanga apenas passada à cinta, levantava-se um berro gemente e, quem olhasse, veria todos os braços fortes erguidos para o céu, rijos e imponentes como lanças, os olhos altos, as bocas escancaradas, entoando o mesmo grito: "Valha-nos Deus!" que era um clamor de piedade por um companheiro que agonizava, estirado nas tábuas da balsa, o peito exposto à luz, açoitado de moscas, gemendo enquanto as ciganas8 grasnavam margens observando as aningas9 que desciam ao sabor da água e as graças finas, brancas, esguias, passavam no ar, em fila, estalando os bicos, os pés, rígidos, duros como flechas.
O sol ardia flamejante, cor de ouro, no céu fúlgido. De tempos em tempos, pelo meio-dia, vinha das bandas das serras um rumor surdo, um ronco distante de trovão. Amontoavam-se nuvens plúmbeas10, outras brancas, muito claras, resplandeciam; caía um silêncio tórpido, adormecedor, a calma envolvia tudo; os ruídos aumentavam de vibração — retumbava. De repente uma larga sombra varria a terra; escurecia. O céu tingia-se de negror, amontoavam-se rolos de nuvens túmidas, sentia-se como que um oceano suspenso — era a chuva que vinha. Mas, para a tardinha, um vento de fogo varria o espaço e, rubra, enorme, silenciosa, a lua nascia, da cor do sol, e ia subindo, sinistra e sanguínea, empalidecendo, diminuindo aos poucos. As preces continuavam e, pela noite alta, uma velhinha santa saía à varanda da casa que os senhores haviam abandonado, fugindo à epidemia, e, de instante a instante, clamava no silêncio badalando uma campainha: — Misericórdia, meu Deus! E, em toda a redondeza, um coro repetia profundamente, misteriosamente: "Misericórdia!"
Abriam-se todas as casas, jatos de luz alastravam a terra e, de novo, lenta e vibrante, o sino soava.
Todo o povo de Santa Eulália, ao místico chamado, corria ao terreiro claro, enluarado, onde o vulto da velha, negro e hirto11, numa imobilidade de estátua, esperava como uma iniciada em êxtase. Vinham à frente as mulheres, a pequenos passos, humildes, como um bando fraco de vítimas seguindo para o sacrifício — caminhavam balbuciando, algumas com os filhos no colo ou escarranchados12 ao flanco. Velhas fanáticas bradavam, parando de instante a instante para gemer súplicas, batendo pancadas brutais nos peitos magros. Homens, em grupo fechado, seguiam atraídos, a cabeça baixa, calados e taciturnos.
Junto da velha profetisa paravam fazendo círculo e ajoelhavam-se. Todos os braços agitavam-se num mesmo movimento, vozes soturnas resmungavam acompanhando a unção do "Pelo sinal" — depois caía um silêncio trágico, quebrado abruptamente pela voz enfática e oracular da velha entoando a oração, até que, em reboante e formidável coro, todas as vozes cantavam alto na quietude do luar para que a prece fosse além dos astros, muito além, até Deus, o dominador das pestes, o benfeitor dos mundos. Um vento forte curvava os ramos; repetia-se o coro no murmúrio das árvores. Não longe, cães errantes uivavam. A retirada fazia-se lenta e gravemente, como em cenário. Súbito, todas as luzes desapareciam e, isolada, mais fúnebre, a campainha, pela última vez, soava. Corria um sussurro surdo: era como a passagem macabra da Peste.
Continua…
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