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Praga - Parte 2
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Praga - Parte 2

Um conto insólito de Coelho Neto

mai 04, 2024
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II

Raimundo, o cafuzo, o mais audaz de todos os vaqueiros, foi atacado pela doença.

​

Certa manhã, ao saltar para o lombilho, sentiu as pernas fracas, a vista turva, quase extinta, náuseas e uma dor aguda no ventre. Como era forte e temerário, manteve-se de pé, apoiado à anca do cavalo, esperando que a tonteira passasse, mas, subitamente, uma golfada amarga subiu-lhe à garganta, fecharam-se lhe as pálpebras pesadamente, um tremor agitou-o e, desfalecendo, sacudido por um arrepio de febre, rolou na terra contorcido, ansiando, estrebuchando-se como um epiléptico. Ninguém o acompanhava, apenas o gado em magotes1 que, ansioso pela marcha através dos campos orvalhados, ia e vinha estirando o pescoço por cima da tronqueira com mugidos altos e prolongados.

​

Ao pino do sol uma pequena guardadora de aves, aproximando-se do cercado, parou atraída pelo espetáculo bárbaro do amor brutal dos touros. Disputando a posse das novilhas tenras, os fortes marruás2 incendidos, lascivos, firmes nas patas dianteiras, os jarretes3 retesos, a grande cabeça baixa, escavando a terra, berravam desafiando-se. Os outros bois, parados, contemplavam.

​

Num ímpeto, os rivais levantavam os olhos fulvos, miravam-se, com um longo olhar faiscante e cheio de iras, recuavam, recuavam, até que, quase tocando os paus da cerca, partiam um contra o outro, devagar a princípio, lentos, traiçoeiros, mugindo baixo, a língua, rubra e seca, pendente e flácida. Estacavam, mas, num brusco avanço, arremetiam — as frontes chocavam-se e os chifres travavam-se, ficando os dois presos, resistindo, arrancando num esforço formidável e teimoso de brutos. Cansados, recuavam no círculo atento dos companheiros e de longe, com outro berro, desafiando-se de novo, investiam recomeçando a luta. As vacas assistiam impassíveis e, de vem em vez, no silêncio, bimbalhava a choca de uma madrinha4 como um sinal de guerra.

​

A pequena olhava distraída, atenta, mas de repente rompeu a rir ingenuamente, vendo passar perto da cerca, aos trancos, um casal amoroso — os dois formando um só na justaposição sensual e fecunda, um só animal dicéfalo5, hediondo. Seguindo-os com o olhar, foi que ela viu por terra, estendido como morto, o vaqueiro Raimundo.

​

A sua primeira ideia foi saltar a porteira para certificar-se, mas teve medo. Partiu a correr, levando à casa notícia da descoberta que fizera.

​

Vieram homens do engenho com a maca de taquara que servia no sítio e recolheram o vaqueiro.

​

A curiosidade tinha feito chegar um grupo à tronqueira, mas no momento em que levantavam o moribundo para transportá-lo à cabana, no alto da colina, toda a gente recuou, cuspindo de nojo, exorcizando a peste maléfica.

​

E logo se espalhou a notícia e em todas as casas, mesmo no terreiro, acenderam-se fogos e ardeu fumegando, o alecrim bendito.

​

— Deus tenha tua alma! - Balbuciavam religiosamente os que viam subir o grupo.

​

Da margem do rio, as lavadeiras estendiam os braços reluzentes da água na direção da colina e no ar, ao sol, faziam uma grande cruz dizendo para o empestado, longe demais para ouvi-las:

​

— Deus te dê o céu, meu filho!

​

Ao cair da noite, o enfermo despertou: sentia a cabeça em fogo, a língua áspera e pastosa e, de vez em vez, violentas picadas nas têmporas. Sem memória, a princípio, foi recompondo a custo, todo o incidente do dia até a hora em que rolou por terra, entre o gado, golfando bílis, repuxado de ânsias. No dia seguinte, de manhã, o médico do lugar subiu a examiná-lo. De pé, à distância do catre6, interrogou-o e, antes que ele concluísse a exposição, tomou de uma carteirinha uma folha de papel e, a lápis, rabiscou a fórmula, retirando-se sem declarar a moléstia, apesar das reiteradas perguntas de Raimundo que o seguia com o olhar apavorado.

​

Fora, a alguém, disse desanimadamente:

​

— É a cólera!

​

Horas depois lhe trouxeram uma poção que ele engoliu com náuseas, caindo pesadamente sobre os panos, contraindo o rosto, cuspindo grosso, enjoado.

​

À noite sentia-se melhor. Animava-o uma esperança de vida. Dormira sem ânsias, sem sonhos, mas acordara em sobressalto, com uma dor fina no ventre como se lhe tivessem enterrado uma agulha umbigo adentro.

​

Era tarde: mais de meia-noite.

​

Dos rumores do campo tinham ficado apenas o fresco ramalhar das árvores e o ronco perene das corredeiras que rolavam as águas pesadas por entre os penhascos escuros onde, pela manhãzinha e à tarde, nos pontos emergentes, apareciam negros de cana em punho, a linha a prumo na água, firmes e pacientes, esperando o repelão do peixe temerário. Um cão ladrava ao longe e, de instante a instante, o mugido melancólico de uma vaca reboava soturno e longo como o som rouco de uma buzina bárbara.

​

Raimundo entreabriu as pálpebras pesadas e quentes de febre, correu o olhar abrasado pelo quarto de reboco, pobre, iluminado por uma vela de carnaúba espetada no gargalo de uma garrafa e, calcando o peito com a mão larga e bruta, a boca escancarada, aspirou aflito, agitando a cabeça negra, revolvendo os olhos brilhantes, na agonia abafada dos dispneicos7. Depois caiu em abatimento atônico, estendeu os braços ao longo do corpo e quedou imóvel, em aparente tranquilidade, sobre o jirau40 soerguido do solo por quatro espeques toscos e assim ficou a ouvir o rumor noturno, compondo toda a paisagem exterior que seus olhos não viam.

​

Dos alagadiços, em lamentação lúgubre de reza, levantava-se o coro trêmulo das jias8, por vezes cortado pelo coaxo ríspido e vibrante de um sapo renitente, de goela blindada, tão metálico era o grito que lançava do pântano verde e podre, coalhado de ervas. Brusca, abruptamente, vencendo os murmúrios e os rumores, vieram aos ouvidos do enfermo, em tom gemente e soturno, ora mais graves, como se as vozes fossem emudecendo, ora vivas, desesperadas, em grita clamorosa, as doces palavras da ladainha.

​

Ele as ouvia uma a uma, acompanhava-as, repetia-as mentalmente, com fé, e o cântico espalhava-se melancólico pela noite, ora indistinto e vago, ora em toda pujança do coro enchendo o campo, ecoando pela mata, atravessando o rio, na espiritualidade do som, visitando todos os sítios e todos os enfermos como uma grande bênção geral santificando a natureza e as almas. Raimundo soergueu-se no catre e, comovido, contrito, as mãos postas, a cabeça inclinada ao peito, pôs-se a dizer baixinho, acompanhando a ladainha noturna, o Ave, erguendo a voz, como se a Virgem não a ouvisse solitária soltava ao seu gemido de mãe ansiosa a quem tinham roubado o filho para que lhe não esvaziasse as tetas.

​

Morrendo a oração, voltando o silêncio, Raimundo mergulhou sob as cobertas deixando um braço nu para tomar a bilha de água, posta no chão, ao lado da cama. Encostou-se ao rolo de esteiras que lhe servia de travesseiro e bebeu avidamente, a goles sôfregos e gorgolejante9, com a cabeça caída, o pescoço rijo, teso, os olhos em branco; depois acendeu o cachimbo e, maquinalmente, sem gosto, baforou a primeira fumarada.

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Continua…

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