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O grande salão do Castelo Davenport era um vórtice de extravagância. Um batalhão de armaduras de aço lustrado circundava mesas de sequoia e um vasto território de baixelas reluzentes. Murmúrios de lisonja e tilintares partilhavam o ar esbraseado com aromas exóticos e a suave melodia de instrumentos. Cortesãos orbitavam sob uma galáxia de estrelas refletidas por candelabros de prata.
Seraphina era um falcão entre pavões. Convidados em trajes variegados de cetim e seda agitavam-se ao redor, suas risadinhas irritantes e conversas frívolas caindo em ouvidos surdos. Ao menos ela apreciava as fragrâncias: jasmim, flor de laranjeira, íris, patchouli, e outras flores e ervas raras – as quais ninguém ali seria capaz de identificar.
Flutuando pelo salão, ela media expressões, gestos, posturas. Um homem tamborilava dedos anelados contra um broche em formato de mão. Uma mulher olhava fixamente para o jovem que servia sua mesa, faminta por mais que faisão. Seraphina catalogava as fraquezas, recursos valiosos. Ninguém detectava o predador em seu meio.
Então um par de olhos – justo o que menos desejava – pairou sobre ela.
Lorde Alistair Davenport se remexeu na poltrona de honra; bochechas coradas, narinas dilatadas, lábios inquietos. A intenção era clara. Seraphina imaginou uma adaga cravada no pescoço esquálido, o ar presunçoso levado por um rio de sangue. Ainda que soubesse pouco sobre Davenport, a reputação do governante bastava para enojá-la. Mas discrição era primordial; ela sustentou a máscara de feições amenas, sua ira enterrada sob as camadas de tafetá cor de vinho.
Seraphina recordou a busca fracassada da noite anterior, e a cacofonia do grande salão desvaneceu. Não encontrou nada nos aposentos de Lorcan, sequer uma mísera pista do paradeiro da relíquia. Encontrá-la numa gaveta ou baú teria facilitado tanto sua busca. Mas não importava; o caçador não a teria por muito tempo.
Então, como se manifestado por seus pensamentos, no meio da multidão, lá estava: sua presa. Lorcan e Felix cortavam as aglomerações de nobres, deslocando-se com a mais falsa casualidade. Num rasante, Seraphina se postou atrás de uma cortina grossa. Estava perto o bastante para escutar os homens. A excitação acelerava o pulso. As festividades da noite seriam sua chance. Precisaria improvisar, mas quando foi que não precisou?
* * * * * * *
* * * * * * *
— Relaxe, meu amigo, é uma festa.
Lorcan ofertou um grunhido que era metade gracejo, metade cisma. Os olhos cor de mel esquadrinhavam cada canto do grande salão, a mão esquerda certificando-se da presença da adaga oculta em suas vestes.
— Sinto-me um arco sem corda.
— Então deixe que a lâmina o conforte – Felix provocou com um tapinha nas costas, sem desviar o olhar da agitação adiante, e cortou o revide iminente de Lorcan: — Teus instintos sempre o guiaram bem, capitão. Confie neles, mas tenha fé em mim.
Lorcan aquiesceu, mantendo-se em silêncio.
— Ainda a charada indecifrável? Temer bufões que desabariam de medo ante os perigos que já enfrentou...
— Nada tão imprevisível quanto as cortes.
— Deveras. – Felix se empertigou quando seus olhos encontraram os do anfitrião ao qual se dirigiam. — Lorde Alistair pode ser imprevisível, mas respeita força e renome. Deixe-o ver a mente afiada sob a aparência rude.
— Força pode incitar desafio – Lorcan murmurou, as palavras se perdendo no crescendo da música que preenchia o ar. Emendou em tom mais alto: — Quem está chamando de rude, pavão?
Felix gargalhou, tomando a dianteira. Seguindo-o de perto, Lorcan apertou os cantos da boca, notando um trio de cortesã rir atrás de leques luxuosos. Os olhos delas piscavam em sua direção antes de desviarem; seus sussurros inaudíveis, de algum modo, eram ensurdecedores aos ouvidos. Lorcan inspirou fundo, endurecendo sua resolução como aço temperado por fogo.
Então estavam diante da figura esquálida de Lorde Alistair, resplandecente em veludo e brocado. Ao lado dele, sentava-se um homem alto e atlético; os olhos afiados brilhavam com a impetuosidade da juventude. Demorou alguns minutos para que Felix enumerasse linhagem, honrarias, e títulos – certamente, autoimpostos – do Senhor-Regente de Esker e seu primogênito-herdeiro, Lysander Davenport.
— Milordes –, floreou Felix. — Permitam-me vos apresentar Lorcan Thorne, da Ordem de Rhovanor, confederado da saudosa Liga dos Domínios Ocidentais, Algoz das Hordas Bestiais, condecorado Capitão de Guerra e, naturalmente, intrépido caçador de relíquias.
— Enfim, face a face! – Lorde Alistair trovejou, esfregando as mãos cheias de anéis. As palavras saíram ligeiramente arrastadas e seu hálito cheirava a conhaque. — Tua fama o precede. Tanto, de fato, que fiz questão de conhecê-lo! Não pense que sou de receber qualquer um em minha corte, mesmo que para me entregar o mais valioso tesouro!
— O senhor me lisonjeia – Lorcan fez vênia; num átimo, era o centro das atenções, sem dúvida graças à pomposa (e exagerada) apresentação de Felix, cujos lábios comprimidos traiam uma sugestão de zombaria.
— Bobagem! Um guerreiro de teu... calibre... certamente o fez por... merecer! – Alistair gesticulou grandiosamente com os braços, quase derrubando a bandeja de taças de uma serviçal. Alheio, ele tentou continuar, mas suas palavras foram abruptamente cortadas.
— Tuas inúmeras façanhas são admiráveis, mestre Thorne –, era o jovem Davenport. — Mas desta última ainda nada sabemos. Por favor, honre-nos com o relato de tua busca.
A expectativa era como escombros de tumbas esquecidas sobre os ombros de Lorcan.
— Receio ter pouco a dizer, lordes. O Vale do Advento é tão perigoso quanto alegam os sábios – mantendo a voz baixa e uniforme, buscou as palavras com cuidado. — E ainda mais enigmático. Árido, quente, indomável, um ermo de culturas destroçadas. Há pouco o que se resgatar ali.
Além das salvaguardas mecatrônicas, guardiões autômatos e imensos portões cromados com suas travas eletrônicas de segredos indecifráveis; por alguma razão, ele não sentiu vontade de compartilhar tal parte. Mas aqueles jovens olhos castanhos não o perderiam de vista até que arrancassem dele toda a história.
— Mestre Thorne, por favor, não nos tome por meros fidalgos curiosos. – Inclinando-se à frente, Lysander emendou, quase sussurrando: — Sabe a que me refiro. Complexos de cavernas de rocha prateada, passagens incrustadas de gemas encantadas, as antecâmaras vibrando... as tais instalações mecatrônicas. Conte-se da Subterra!
Lorcan sustentou o olhar e o sorriso matreiro. O jovem lorde-herdeiro sabia mais do que considerava confortante e adequado. Ou seguro. Davenport-pai nunca fora um mistério, quer para o experiente caçador, quer para os apáticos súditos de Esker, mas pouco sabia de Lysander, além da óbvia relação conturbada com seu pai.
— Respeite os convidados, Lysander, não é polido segredar em público – interviu Lorde Alistair, puxando o filho de volta de modo desastrado. Então voltou-se a ele à meia voz: — Se deseja alcovitar, vá a uma taverna!
— Meus lordes, perdoem o intrépido caçador. A despeito da excessiva humildade, ei-lo diante de vós, retornando triunfante da demanda que lhe foi incumbida!
— Triunfante, sim! – Lorde Alistair explodiu, os olhos lampejando com alegria infantil.
— Mas não ileso. As sendas do Vale exigiram engenhosidade, resiliência e sacrifício.
Lysander repetiu aquelas últimas palavras, lançando um olhar oblíquo para o pai:
— Qualidades raramente cultivadas, ou valorizadas.
— Cuidado, garoto, não vá morder a língua – repreendeu Davenport-pai, estremecendo.
O ar pesou, os sons próximos cessaram. O jovem lorde afetou um sorriso, mas manteve-se em silêncio, recompondo-se.
— Releve, Thorne, a criança esquece... – o punho conteve um arroto — ...lugar. Somos gratos por teus esforços. Sem eles, meu tesouro permaneceria perdido!
— Ainda que além do que creio merecer, lordes, vossa gratidão é apreciada.
Lorcan aquiesceu. No refúgio da alma, deu atenção aos alertas do instinto. No da mente, avaliou o terreno que trilhava, prevendo que este desmoronaria sob a tensão dos grilhões que prendiam um Davenport ao outro.
Continua…
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