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O grande salão estava em polvorosa. Aves assadas exalavam temperos fortes, rodas de queijo envelhecido estalavam ao corte, pães ainda fumegavam ao toque, jarros e taças de vinho brilhavam como o sangue ardente das entranhas do mundo. Sobre o estrado elevado central, os membros ilustres da corte esbanjavam sua satisfação com o banquete extravagante.
Mas nem todos pareciam se divertir.
De longe, Lorcan notou o anfitrião da noite, seu assento de carvalho ornamentado com folhas de prata. Lorde Alistair tentava evitar o desperdício do vinho com uma mão indolente, enquanto gesticulava a outra de modo enfático; a tez do homem ora ardia de modo febril, e seu olhar, embora desfocado, traía uma ira crescente.
Alvo da repreensão ébria do pai, Lysander sustentava uma máscara, embora a tensão que lhe tomava o corpo fosse nítida ao olhar atento: os nós dos dedos embranquecidos, músculos e veias saltadas na linha do maxilar e no pescoço, olhos fixos em desafio aos de Lorde Alistair.
Lorcan não soube precisar a duração da contenda entre pai e filho, mas pareceu-lhe uma eternidade. E então aconteceu.
Lorde Alistair se ergueu, cambaleou, e exigiu num berro:
— Silêncio!
O salão emudeceu.
Ao firmar-se contra a mesa do banquete, uma sugestão de vergonha cintilou nos olhos marejados do anfitrião.
— Ao que parece, vosso lorde-herdeiro tem mais estima por um caça-recompensas do que pelo próprio pai.
Lorde Alistair encarou Lysander como uma víbora à presa, mas sua voz era amarga:
— Já que admira tanto a laia, vejamos como tu lidas com ela. – Os lábios se curvaram com maledicência. — Lorcan Thorne, o lorde-herdeiro o desafia a um duelo! Amigável, é claro.
Lysander empalideceu, um gosto amargo acumulado no fundo da garganta, os lábios retorcidos em uma careta. Mais uma vez permitira-se ser facilmente enredado pelo pai. As mãos cerradas eram testemunhas silenciosas da frustração de ter de dançar ao ritmo das manipulações de outro.
Era o mundo do qual o lorde-herdeiro desejava escapar. Os olhos viajaram de Alistair para Lorcan, depois de volta; as duas faces de uma moeda que decidiria seu destino, se algum dia ele se atrevesse a lançá-la ao ar. Por fora, fingiu tranquilidade, mas no íntimo o coração pulsava.
Por sua vez, Lorcan tinha expressão ilegível; ponderava sobre suas opções.
— Algo errado? Talvez os talentos do caçador não bastem contra um Davenport?
A bravata de Lorde Alistair foi acompanhada de um silêncio angustiante. A opulência agora sufocava, os aromas irritavam, as luzes empalideceram. O caçador desejou uma brisa, uma montanha ao horizonte, até mesmo ruínas escuras e úmidas. Contudo, o salão ofertava apenas frivolidade.
— Duvido muito... – Lorcan respondeu com vagar, erguendo-se e dirigindo-se rumo ao estrado central, dando início a burburinhos tímidos. Ainda que ele soubesse o que a honra lhe exigia, não estava nem um pouco satisfeito. — ... que qualquer talento esteja à altura dos Davenport, lorde.
— Discordo! – Lysander impunha novo silêncio. — Vivo ou morto, nenhum Davenport resistiria às habilidades lendárias deste homem!
O lorde-herdeiro avançou. Tinha uma mão no punho da espada e os olhos brilhando de antecipação:
— Mas se puder relevar as tolices de um velho, mestre Thorne, rogo pela honra de pôr à prova meu valor.
Lorcan franziu a testa e pressionou a mandíbula. Não tinha intenção de cruzar espadas pela diversão ou honra de qualquer outro que não a própria. Mas Felix foi mais rápido e, posicionando-se ao seu lado, aceitou o desafio em seu nome.
Com um floreio, Lysander desembainhou sua espada, a lâmina afiada brilhando na luz. O burburinho recomeçou. Lorcan hesitou, orgulho e pragmatismo duelando dentro de si. Fantasmas de camaradas perdidos há tempos sussurravam aos ouvidos. Felix estava em silêncio, mas seus olhos lhe sanaram todas as dúvidas. Lorcan jurou jamais permitir que outro viesse a conhecê-lo assim tão bem outra vez, maldito fosse!
— Lorde Davenport – o caçador tinha sua espada envelhecida em punho; a saudação tinha vindo como um lembrete a si sobre quem ele estava prestes a enfrentar. Lysander sorriu largo e levantou a espada em resposta.
Caçador e lorde iniciaram a dança, circulando um ao outro.
Lysander apertava a pegada da espada, nós dos dedos brancos, contendo uma energia nervosa. Com brados selvagens, o jovem avançou, sua lâmina brilhando à luz das velas; o primeiro golpe errou o alvo, e os dois seguintes foram aparados com facilidade quase desdenhosa, o som retumbante do aço ecoando alto.
Lorcan se movia com passos calculados, olhos atentos buscando fraquezas na postura do oponente. Cada movimento de seu corpo era sutil, sem esforço: desviava-se, aparava ou contra-atacava os golpes desajeitados que se esforçavam para atingi-lo. Controlava a respiração, a tensão dos músculos, o ímpeto guerreiro, ao contrário do jovem oponente.
Entre os espectadores, fingindo excitação pelo duelo, Seraphina analisava: a economia de movimentos, o jogo de pés, a mente astuta por trás do exterior simplório do caçador. Viu-se intrigada pelo contraste entre petulância arrogante e determinação serena. Quais as implicações do que estava testemunhando?
A frustração de Lysander aumentava; o rosto retorcia-se com cada ataque fracassado. Não havia brecha na fortaleza impenetrável contra a qual se atirava. Sentia os membros pesarem, cada movimento mais lento que o anterior.
Lorcan era paciente, um caçador brincando com a presa. Impassível, tentando não trair a vontade de encerrar aquela charada com um golpe decisivo, emulou ataques críticos, forçando camadas de defesa que, ainda que com forte relutância, cediam aos poucos. O garoto tinha espírito, se não alguma habilidade.
Antes que o próprio oponente percebesse, Lorcan notou abertura na guarda baixa. Deu um bote, desviou da espada e torceu a mão que a pressionava. Lysander guiou os olhos incrédulos do piso onde sua arma tinha caído para a ponta da lâmina que pairava rente à própria garganta.
Sem sangue nem amargura, o duelo havia acabado.
* * * * * * *
* * * * * * *
O caçador deslocou o corpo, desferindo o golpe final que levou o jovem lorde-herdeiro ao chão. A multidão explodiu: aplausos pela demonstração de habilidade e persistência, vaias pela vitória da plebe sobre a nobreza.
Seraphina se manteve impassível, lábios comprimidos, sobrancelhas arqueadas.
Não seria tão fácil lidar com Lorcan Thorne, deveras. Mas o que a preocupava mesmo era a postura de Lysander durante o duelo: a confiança arrogante do início, a frustração crescente ao ser repetidamente superado, a resignação ao ser desarmado. A mente do jovem Davenport traía suas reais habilidades, tornando-o mais vulnerável do que sua posição sugeria.
Ela procederia com mais cuidado. Destacava-se na dança do engano, mas para escapar dali em segurança, e de posse da relíquia, sua próxima jogada deveria ser mais bem calculada. Recolhendo-se à anonimidade em meio a agitação, Seraphina deslizou pelo salão. Lançou um olhar oblíquo ao caçador que ajudava o jovem-herdeiro a erguer-se. Deixou o salão.
Lorcan Thorne faria bem em vigiar as próprias costas.
Continua…
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