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Praga - Parte 3
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Praga - Parte 3

Um conto insólito de Coelho Neto

mai 11, 2024
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III

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Já ia para duas semanas que ele ali estava estirado, imóvel, tremendo de frio, ardendo em febre, numa intermitência constante, bebendo caldos magros, nutrindo-se de carne do vento e um bolo de arroz cozido em água e sal. Permitiam-lhe, como extravagância, o fumo e seu consolo, quando se via só, nos insípidos meios-dias ensolarados, à hora em que as rolas se refugiavam no sapê, gemendo baixinho, era soprar baforadas para um quadro de tema patriótico pregado na taipa, representando o imperador em Uruguaiana, fardado, calmo e firme, entre generais, a observar sereno a culatra de um canhão que explodia em estilhaços numa onda de fumaça onde morriam soldados.

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Às vezes cantava sentindo virem-lhe à alma saudades antigas e sua voz, grave e enfraquecida, ia aos poucos desfalecendo e acabava em hausto — era a dispneia que o sufocava, obrigando-o a recurvas de tronco e a invocações gemidas do nome de Jesus. Vinham vê-lo duas vezes ao dia — de manhã, um pequeno que lhe trazia o caldo numa marmita e o fumo picado dentro de um cesto; à tarde, a velha Úrsula, a cabrocha1 caduca e feiticeira que entrava resmungando seguida de um cão leproso. Abria a lata, deixava os pedaços de carne num prato de folha, ia à fonte encher o pote enquanto o cão, olhando para o mundo, raspava o ventre com a pata, ganindo baixo, frenético.

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Raimundo odiava Úrsula como todos os mais negros. Corriam versões trágicas sobre ela. Todo o sertão estava cheio do seu nome e mais da sua alcunha sinistra: a Caapora, talvez porque costumava vagar à noite, mais o cão, pelos campos adormecidos, com o cachimbo na boca e dentes, como o gênio da lenda indígena. Sua oca, quase uma caverna, cavada na barreira, à margem do rio, era o terror de todos.

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À noite ninguém se aventurava a descer a rampa com receio de encontrar a bruxa! Os que a viam passar, ao sol, cabeça nua, descalça, remoendo as mandíbulas como um ruminante, com as carnes ressequidas apontando pelos rasgos da saia, apoiada em um pau, parando, de vez em vez, para olhar o céu, sorrindo, de mãos postas, a balbuciar palavras misteriosas para o alto, recuavam esconjurando-a. As crianças, detrás dos mourões, jogavam-lhe pedras.

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O cão, um velho cão de caça magro, entanguido, sem pelo, com a cauda cortada rente, seguia na sua sombra rosnando a todos com ódio. Afirmavam que, pelas noites escuras, na hora satânica do curupira, Úrsula tomava o caminho do Areal, campo árido onde se enterrava, para profanar as covas, roubando os ossos de crianças mortas sem batismo. Guardava-os e, na hora mágica da noite cabalística de agosto, quando os ventos de São Bartolomeu varrem vales e serras, queimava-os para fazer com as cinzas o segredo terrível de seus filtros.

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Havia quem jurasse que o cão pelado que a seguia sempre era o diabo. Era ele que lhe ensinava toda sinistra magia, velando com ela até a hora do canto do galo quando se recolhiam aos mesmos panos, juntos, como dois amantes, tanto que, pela madrugada, uns gritos ferozes acordavam o silêncio como o alarme sensual do casamento macabro.

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Úrsula vivia defendida pela lenda, e apesar do horror que inspirava, tropeiros compassivos atiravam-lhe esmolas.

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Raimundo tinha-lhe asco e medo. Em outra ocasião teria trancado sua porta para que a bruxa nem lhe visse o quarto, mas só e doente, abandonado por todos, sem o conforto de uma amizade, sentia-se mais animado quando ela aparecia. E dirigia-lhe a palavra com carinho, insistia com ela para que ficasse, agradecendo-lhe muito o trabalho que com ele tinha, por humanidade, de boa que era, e queixava-se dos outros que, sem coragem de enfrentar a doença, recorreram à maldita para que se encarregasse dele.

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E chamava-a: queria-a ali, junto ao catre, para contar-lhe o que ia lá por baixo: se a peste tinha abrandado, quem tinha morrido na véspera, porque o sino tinha tocado o dia todo; se um grito que tinha escutado alta noite fora de algum negro castigado pelo feitor Cabinda.

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Úrsula, porém, não dava resposta: continuava a resmungar uma espécie de canto monótono, em língua africana, dando voltas no quarto, passando um fogareiro de barro onde ardia alfazema, os olhos baixos, as mamas flácidas, bambas, penduradas, fazendo chocalhar um colar de búzios que lhe cercava o pescoço enrugado.

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Depois, erguia-se mascando com as gengivas sem dentes, cuspia para os cantos a pasta negra do fumo, puxava a camisa, guardava as pelancas dos seios e, com um grunhido, chamava o cão e partia, resmungando seu canto tedioso, sem voltar os olhos, batendo com a porta. Enfiava depois o braço magro por um buraco aberto na taipa para dar volta à tranca interna.

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Raimundo sentava-se, tomava o prato no colo, sobre as cobertas e com os dedos esfiava a carne, que ia comendo enjoado, a ouvir o arrulho jururu dos pombos no sapê e os gritos do bem-te-vi, cortando vibrantemente o chiado vespertino das cigarras. E sem ver, compreendia que era a noite que vinha e, mal o sino dobrava no silêncio da tarde, benzia-se, fazia luz no quarto e mergulhava debaixo das cobertas molemente, pensando, com terror, na insônia apavorante.

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Continua…

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