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Praga - Final

Um conto insólito de Coelho Neto

jun 15, 2024
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VII

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As senzalas dormiam. Pairava um calmo silêncio. Por vezes, as lufadas do vento traziam uma passageira zoada e fugiam levando por diante o rumor florestal. Num recôncavo, entre rochas, morria um fogo triste.

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Raimundo, acossado pelo assombro, atravessava os caminhos sem dar por eles, como se os não conhecesse, tão atordoado tinha o espírito. Seguia, sempre a fugir, sem pausa, ofegando, e assim foi que se achou em meio do pasto raso, na extensa várzea seca onde os errantes rebanhos desfilavam e tresmalhados corriam ao sol com um alto e dorido balar de ovelhas, respondido, de tempo a tempo, pela voz possante dos touros, que de além, de outro pasto, longamente mugiam. Àquela hora, porém, a campina deserta não reboava com o tumulto do tropel das patas — era vastidão e soledade, e apenas os grilos cantavam na erva e a acauã tristonha, oculta entre os cajueiros, de espaço em espaço, gemia.

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Raimundo ganhara a planície e fugia aos galões como um garrano batido, sem destino, arquejante e frouxo. De repente, porém, ante seus olhos uma sombra partiu num arranco brusco, mas sem grande alcance, porque no mesmo instante quase um surdo relincho quebrou o sossego do descampado e a terra ecoou com o patear insatisfeito de um animal que se debatia, enredado num capão de mato, perto de um tijucal que reluzia à lua. Era um potro.

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Espantado, partiu aos trancos, pinoteando, aos coices, volteando assustado. Raimundo, que recuara tomado de pânico, reconhecendo o animal, adiantou-se e ficou à distância vendo-o debater-se, procurando, a violentos safanões, rebentar a corda que o prendia a um toco que mal saía à flor da terra.

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Deixou-o correr, mas, de repente, tomado de uma ideia estranha, pôs-se à espreita, em atitude de assalto e, mal o viu estacar, os jarretes rijos, a cabeça alta, as ventas dilatadas, farejando desconfiado o ar da noite, arrojou-se lhe à frente num salto intrépido, lançou lhe as mãos às crinas e, de um só golpe do facão, cortou a embira tesa, saltou para o dorso, escarranchou-se cravando os calcanhares no ventre do animal, que volteou nas patas traseiras, empinando-se, firme, brandindo as mãos em equilíbrio, mas o cavaleiro, peão dos bravos, o melhor, talvez, de toda a cercania, firmou-se seguro sobre o pelo liso e escorreito do bicho, domando-o à força de repuxá-lo pelas crinas e de lhe torcer as orelhas hirtas.

​

O animal abateu sobre as patas, recuou até tocar a terra com a anca e partiu num arrojo feroz para corcovear de novo, ora de flanco, ora aos galões, relinchando surdamente até que, vencido e acuado pelos gritos selvagens do cavaleiro, estirou o pescoço rijo e arrancou em velocíssima desfilada através do campo alvo e deserto, varando o ar que silvava aos ouvidos de Raimundo com uma zoeira ríspida. E tanto quanto os rijos músculos podiam, o animal distendia-os em vertiginosa corrida - rente da terra, quase roçando com o ventre pelas rasteiras sensitivas do campo que esmoreciam.

​

O negro, na fúria de açular o potro, esquecera o horror da companhia. Levava o terror dentro da alma, mas a grande esperança dos transes aflitivos dizia-lhe que da sua fuga por longos caminhos arredados dependia a salvação do seu corpo e nem quis voltar o rosto para evitar que os olhos encontrassem de novo a caveira sinistra, mas a um salto impetuoso do animal o ruído estrepitante dos ossos abalados fê-lo involuntariamente volver o olhar e viu, em toda a sua hediondez, o trasgo89 pavoroso à garupa, batendo as maxilas, com as órbitas alumiadas por um fogo cerúleo que minguava e refulgia como o lume dos pirilampos na escuridão das noites sem estrelas.

​

― Epa! Epa! - Bradou, deitando-se a fio comprido e gritando quase ao ouvido do animal: ― Epa! Epa!

​

E atrás, na anca, estalidava a ossaria implacável.

​

O campo ficara longe e já começava a mata com seus altos jequitibás e todo o seu versudo1 arvoredo. O caminho apertava-se se multiplicando em carreiras, veredas, azinhagas tortuosas, trilhos de mocambeiros, picadas estreitas seguindo para diferentes pontos da grande e espessa floresta virgem de além-rio, na orla intrincada da serra.

​

Outro raio de lua, atravessando as copadas frondes, caía em língua oblíqua sobre o solo todo juncado de folhas secas onde os passos estalavam e lá pelo interior, no recesso silvestre, não longe, andavam aos pares bestas bravias no idílio que, segundo é crença, fazem todas, principalmente as suçuaranas carniceiras nos tempos dos claros luares, que é o tempo do amor e da volúpia entre as feras.

​

Raimundo torceu o rumo ao animal e guiou-o para a planície, caminho das habitações e excitando-o:

​

― Epa! Epa! - Brandia o facão diante dos seus olhos rútilos, saltados, fazendo faiscar a lâmina.

​

O potro arquejava, ainda assim ganhou, em pouco, grande distância através dos ásperos e rudes desvãos da campina plana e parda, fofa e movediça, um cinzal2 por onde passara a chama devastadora das queimadas, deixando apenas, aqui e ali, espetado no solo, um toco curto, adusto, meio carbonizado e milhares, milhares de árvores tombadas no chão torrado, negras, frias, prostradas – uma só, alta e forte, tostada e nua, subsistia de pé, esgalhada, sinistramente negra como o espectro hirto da extinta floresta verde, velando melancolicamente na desolada soledade de uma necrópole de troncos.

​

O potro, exausto, cedia pouco a pouco ao desfalecimento. As pernas fortes, os duros jarretes de estalão criado em vastas planícies percorridas a galope duas e mais vezes ao sol dos dias abrasados, bambeavam, tremiam; ia cedendo. Caíra em galopes, aos arrancos, com um surdo arquejo que lhe subia rouco do largo peito gotejante. De vez em quando as suas patas tropeçavam em saliências de raízes, e por pouco não arriava sobre a areia, mas o cavaleiro lhe repuxava as crinas, torcia-as, gritando-lhe em repetido gorgolejo rouco:

​

― Aôo! Aôo! - Entrava a trotar frouxo, ziguezagueando, sacudido de tremores, escorrendo em suor, a boca aberta, babando espuma, as narinas largas, dilatadas, palpitantes, insuflando sôfregas.

​

Raimundo, compreendendo que era necessário correr, correr sempre até que o sol nascesse, pôs-se a bramar como um possesso, mas debalde: o animal, estafado da corrida louca por planos e barrancos, pelas areias fofas dos leitos dos rios secos, pelos pedregais e pelo atoleiro peganhento das ipueiras3, não resistia mais – ia às tontas, abalando a cabeça, com regougos, num passo incerto e trêmulo, cansado.

​

Foi então que o negro, desesperado, sentindo-se ainda presa do horrendo pesadelo, vibrou o facão e cravou-o na anca do animal. Triniu um relincho dorido e o cavalo, em quatro pulos altos, agitando nervosamente a cabeça, rolando os olhos, enveredou por um caminho de silvas4, sob uma abóbada de ramos, atravessou-o em desfilada com um farfalhar de folhas e de galhos que vergavam e ganhou o campo, as terras cultivadas, perto do casario do sítio.

​

Súbito estacou. Tremia todo: a cabeça, ora alta, ora baixa, não parava, num movimento aflito; escorria-lhe do focinho uma grossa baba. Um joelho dobrou-se logo retesando, hirto: deu dois passos tardos e lentos, parou e foi curvando as pernas dianteiras, agachando-se, a tremer, aos bufos.

​

Raimundo estugou-o com ambos os calcanhares, abriu-lhe nova ferida na anca: o sangue jorrou em borbotões negros. O animal soltou um relincho fraco, agitou-se em um derradeiro esforço, mas não conseguiu senão arrastar-se. Bateu com o peito contra a terra duas vezes e, por fim, esticando o pescoço com um ansiado regougo, rolou de flanco, com o olhar vítreo voltado para o céu: abriu duas vezes a boca, agitando a cabeça e abateu-se. Entrou a estrebuchar, foram-se-lhe enrijando os membros em uma imobilidade súbita. Soergueu um pouco a cabeça, um jato de espuma embranqueceu lhe os beiços, um frêmito percorreu-o todo até a cauda, por fim a cabeça tombou.

​

Raimundo, que saltara logo aos primeiros tropeços do animal moribundo, mirou-o indiferente; de repente, voltou-se num giro brusco, bracejando como para enxotar uma perseguição, meio tonto, desequilibrado, e caiu de costas. Os olhos abriram-se-lhe diante do céu de um leve azul macio e fresco, carminado para as bandas da serra em nesgas sanguíneas. E sorriu não vendo mais o esqueleto que a madrugada enxotara para o túmulo.

​

Estrelas murchavam como flores e a lua pálida esmaecia, quase confundida com o céu, que parecia meio embaciado por uma névoa tênue como a pulverização do orvalho.

​

A paisagem esclarecia-se, toda verde, menos para as bandas da serra, que era de um azul forte, onde se destacavam os pingos amarelos das flores das piúvas e as folhas claras das embaúbas.

​

O rio era como uma larga, extensa estrada de cristal por entre cajueiros, tão serenas corriam as águas, de uma límpida beleza, que toda a orla de árvores nelas se revia e reproduzia sem o friso mais leve. Garças, alvíssimas, partiam em bandos com rumor de asas claras e subiam em demanda dos ares, como uma leva de pequeninos anjos. Dos colmados evolava-se por diversos pontos um fumo tênue e alto, no espaço, urubus circulavam.

​

Raimundo sentia-se num bem-estar de convalescença. Sentou-se com as mãos nas pernas, os olhos ao longe, pensativamente. O sol subia maravilhoso, com um esplendor de triunfo e o negro, como se nunca tivesse visto uma madrugada, olhava extasiado.

​

Dos louros milhos voavam, chalreando, nuvens de periquitos e os rinchos agudíssimos dos carros que partiam juntavam ao rumorejo matinal a nota dos seus eixos, primitiva, antiga como a primeira jornada da família humana. O céu, para o ocidente, meio encardido pela bruma, ia aos poucos tomando o seu azul fulgurante, sem o menor laivo de nuvem.

​

Não longe, num estreito caminho margeado de mimosas, Estrada de Santa Cruz chamado, bifurcando-se: para a esquerda, rumo da vila, rumo da serra para a direita, levantou-se um rumor tumultuário. A espaços, um berro de touro reboava, em pouco foi um tropel de cascos batendo o solo seco a trote, em bolo. Bois apertados corriam chocando os chifres, aos pinotes, uns por baixo, outros pelos socalcos5 das rampas, aos galões, picados pela vara dos campeiros.

​

Raimundo abriu um sorriso idiota, ergueu-se e olhou: a boiada passava a uns cem passos. Dentre o estrupido do gado partiu uma voz esganiçada, falsete agudo, cantando com indolente e demorada música:

​

Serra, serra, serrador
Não descansa de serrar...
Vozes gemeram em coro:
Serra, serra, serrador
Não descansa de serrar...

​

E um grito:

​

— Ôôô!! - Ecoou longamente pelas quebradas úmidas. Raimundo fez alguns passos trôpegos, a olhar sempre para os capoeirões ondulantes por onde passava a tropa e, recordando os seus dias de vaquejada, desferiu a cantiga do seu rancho:

​

Na rampa da encruzilhada
Chora e geme a jaçanã,
Eu hei de chorar como ela
Se não te vir amanhã

​

E parou. Novo espasmo agitou-o num calafrio violento, ainda assim, arrepiado, trêmulo e bambo, repetiu a cantiga:

​

Na rampa da encruzilhada...

​

E pôs-se a andar em passo de ébrio, cambaleando, ora aos arrancos arrebatados como se o empurrassem, ora moroso, a cabeça baixa. Parecia cego: ia de encontro às árvores, metia-se pelos alagadiços, chafurdando, indiferente, tranquilo, cantando sempre a mesma quadra triste.

​

De repente, estacou brandindo o largo facão ao sol da madrugada. Circulou um olhar vago e atemorizado: estava à borda de uma rampa íngreme, embaixo um pântano verde alumiava, para o longe se estendiam as tábuas verdes empenachadas.

​

À margem solitária e já coberta de erva miúda, uma cruz negra velava — dos braços pendiam-lhe corimbos de florinhas brancas como se o lenho fúnebre, cravado na terra úmida, tivesse revivido para nova florescência.

​

O assombrado ajoelhou-se, baixou a cabeça até encostar a base do queixo na terra e, assim de bruços, com o olhar fulvo, imóvel como o de um tigre acuado, ficou a mirar o pequeno símbolo religioso que santificava o ermo.

​

Era ali o túmulo de mãe Dina; ali havia mergulhado o espectro. De repente um bloco de terra desprendeu-se e rolou pela ravina esfarinhando-se. O terreno frouxo, minado pelas formigas, cortado de antigos sulcos de enxurradas, desmoronava-se. O negro teve então uma ideia sinistra para livrar-se da morta por todo o sempre: Ajoelhou-se e, agarrando a faca a mãos ambas, pôs-se a cravá-la na terra, cavando e empurrando os torrões pela rampa, seguindo-os com o olhar ardente.

​

Quase toda a terra ia parar ao pântano profundo e o negro, a mais e mais enfurecido, escavava, escavava, como se quisesse aluir a ribanceira imensa sobre a pequenina cruz florida de madressilvas6. Mas na agitação delirante esquecia o perigo e, como procurasse desprender um bloco, brandiu um golpe em falso e rolou, com a terra, de roldão, num rebolo, mergulhando no pântano coalhado de ervas.

​

A água verde esparrinhou e fechou-se; círculos distenderam-se, vieram à tona borbulhas...

​

No azul o sol vencia o seu curso triunfal. Vinham chegando tropas sertanejas e pela estrada de Santa Cruz, fulgida e lisa, ao trote das alimárias carregadas, um doce villancico7, quase elegíaco, de tão lânguido e tão triste, acordava o silêncio:

​

A saudade traz mais penas
Pra dentro do coração,
Do que traz penas no corpo
A garça de arribação

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