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Praga - Parte 6
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Praga - Parte 6

Um conto insólito de Coelho Neto

jun 08, 2024
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VI

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Com essa recordação trágica, revolvendo na alma todo o seu passado sombrio, Raimundo não conseguia aquietar-se. Irritavam-se lhe os nervos, encheu-se lhe o coração de sobressaltos. Parecia-lhe que de todos os lados bocas invisíveis soltavam gemidos abafados e que as sombras das roupas que pendiam das cordas, movendo-se nos muros, cresciam desmesuradamente, aproximando-se com o silêncio, com a leveza sutil das coisas fantásticas. Os olhos do enfermo não se podiam arredar da porta, fitos, secos, fuzilantes, magnetizados pelo terror. O coração precipitava os movimentos e os membros, em uma frouxidão de covardia, lassos, estirados, pareciam presos nos liames de imobilidade súbita.

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Um ímpeto de força nervosa fê-lo sentar-se; correu a vista atônita, apavorada, por todo o recinto, com anseios de asfixia, apoiado às mãos, tremendo como se o agitasse um fluído; outro impulso atirou-o ao leito com a brutalidade de um empurrão violento.

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Subitamente caiu uma grande sombra. A vela extinguira-se de súbito e, por todas as frestas do teto, pelos interstícios do sapê, pelas aberturas da taipa dos muros, entraram raios e nimbos1 da lua da meia-noite. A alma clara do silêncio invadira o aposento estriando a treva de palores, tornando-a mais lúgubre com a sua tatuagem diáfana. A calma pairava; os próprios grilos domésticos, surpreendidos pela invasão tenebrosa e pela visita triste do luar, calaram-se. O enfermo sentiu-se mais isolado ainda.

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As visões começaram a surgir como se lhe subissem do coração em tumulto, precipitando-se, atropelando-se num revoluteio satânico. Eram lumes errantes que flamejavam no escuro, fulvos, vivos como os vagalumes: abriam-se em halos, retraíam-se e desapareciam repentinamente. Eram manchas, mais negras do que a própria treva, voando como enormes vampiros de um para outro ponto, alongando asas bífidas2 e, de momento a momento, num trino repetitivo, um grilo cantava. No ar espesso havia um frêmito de voos. Incerto e trêmulo, vacilando como ébrio, Raimundo ergueu-se do leito, descalço, arrepiado; abriu os braços e, às apalpadelas, cego no horror da sombra, foi experimentar a porta, ver se estava bem fechada, assaltado pela ideia de uma visita de bruxas.

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De pé no meio do quarto, seminu, arrastando o lençol branco, tiritava gelado, suando frio como se estivesse sobre um campo de neve fustigado por um vento glacial. Sentia uma estranha sensação de abandono. O terror crispava-o e interiormente, como se o seu espírito tremesse, corriam, coriscavam frêmitos de assombro.

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Colou o ouvido à porta, arfando, e percebeu distintamente a ânsia de um soluço — talvez o vento soprando ao longe nos penachos de bambu, talvez a água do rio rolando ardente por entre as penhas. Deteve-se contido, sem pestanejar sequer, vergado, as mãos nos joelhos, a cabeça encostada à porta como que auscultando a palpitação da noite e ouviu o estrépito rápido e ríspido da tritura de maxilas, dentes secos trepidando numa estralada infrene.

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Empinou-se abrupto; a boca escancarada em hiato, o olhar gázeo3 e turvo, apalpando o escuro, titubeante e trôpego. Quis recuar, mas um poder estranho soldou-o ao posto horrível. Tomado de pavor, foi involuntariamente derrubando o busto e, de novo, encostou o ouvido à porta: o rilhar dos dentes aumentava, mandíbulas matraqueavam e, de vez em vez, a madeira rangia, estalava à pressão dos dentes que a trincavam. E, enchendo o silêncio, o áspero roque-roque espectral crescia assombroso e terrível.

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Foi tão violento o pavor que o negro abateu pesadamente, rolando sobre um monte de panos úmidos que atulhavam um canto do quarto e, agachado, com o rosto na terra, pôs-se a espiar pela fresta da soleira da porta, tentando descobrir o vulto do duende que errava pelos campos com tamanho estridor.

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Nada viu; mas de um salto, arrastando todos os trapos que encontrou ao alcance dos dedos crispados, pôs-se a calafetar as fendas, abafando a luz para que também o fantasma não conseguisse passagem. Mas o ruído crescia forte, estrépito, célere, igual ao que seus dentes faziam, na convulsão da febre que lhe voltara.

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Fortificado, esperou, de cócoras, com as duas mãos à porta, opondo resistência aos empurrões da ossada perseguidora. Debalde, porém: seus pulsos enfraqueciam, o suor pingava em grossas gotas perenes, faltava-lhe o ar, os joelhos curvavam-se trêmulos, moles, e recuando, sempre com os braços estendidos, num gesto duro de repulsa, a boca escancarada, os olhos paralisados, ele caiu de costas, soltando, num suspiro estremecido, o nome da assassinada: "Mãe Dina!"

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Foi como um apelo. A porta frágil estalou; mais forte rangeram os dentes, seguidos de um estralejar de ossada tripudiante. Raimundo ergueu-se medroso e feroz; encostou-se à porta, firmando-se nas pernas retesadas, os cotovelos fincados resistentemente. Tudo era em vão: a madeira fendia-se quase sem barulho, como se desfazendo – foi caindo aos poucos, tábua por tábua, roída pelos dentes que batiam sempre, até que nada mais houve e o céu e o campo, iluminados de modo pálido, ficaram defronte adormecidos num sono tranquilo, ao luar.

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À claridade fria da grande lua, Raimundo viu, emoldurada pela porta, coberta de algas e de jias coaxantes, a boca gotejando a água podre do pântano, toda enroscada de ervas, o crânio fendido, a tirar lentamente, com os ossos dos dedos, partículas de miolos roxos e jias pequeninas, verdes, de olhos fosforescentes, Mãe Dina, a morta, com um braço erguido, hirto, os dedos apartados num gesto terrível de ameaça. Um grito formidável atroou a noite serena. A aparição quieta, sempre a esmigalhar miolos na ossaria amarela dos dedos, acendia, de vez em quando, nas órbitas escuras, o fulgor de dois fogos-fátuos. De momento a momento os dentes nus rangiam e os sapos que a cercavam, como se ela fosse a deusa lamacenta dos alagadiços, coaxavam arrastando-se pela terra ou aos saltos, com um bater oco dos ventres, em torno dos ossos dos seus pés podres.

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Raimundo, ao fundo do quarto, agitado por tremores, caído de encontro ao muro, procurava pela parede o seu facão de mato ou o seu forte cajado de ponta de lança, mas a sua mão incerta apenas encontrava os farrapos pendentes. Os sapos, aos pulos, invadiam o interior, espalhando um fosforescer tíbio de chama sepulcral. Raimundo sentia já pelos seus pés arrastarem-se as jias viscosas, outras, esparramadas, fitavam-no com os bugalhos dos olhos. Ergueu a cabeça com ânsia e no céu grande, calmo, bordado de astros como um mapa suspenso dos mundos luminosos, as estrelas deformavam-se se esverdeando e, de repente, saltando de um para outro ponto, chatas, repugnantes, semelhando jias, espalharam pela tranquila noite luminosa um sidéreo coaxo soturno.

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A avantesma4 aliciara todos os elementos da noite para um apocalipse de morte. Os astros puros concorriam, todo o céu cedera o seu contingente fulcite5 para o sabá6. As estrelas descreviam parábolas terríveis cortando a sombra de sulcos lampejantes; nuvens de formas bizarras, pandas, varriam o espaço como uma rolda de bruxas, precedidas por um cumulus7 tétrico, do feitio de um barco, de onde saltavam estrelas coaxando. O próprio vento que, a princípio, amainara, soprava com estrépito derrubando os ramos e dando vozes a toda a vegetação sombria que ululava pavorosamente. Raimundo, terrificado, encantoou-se, mas as suas mãos não cessavam de arranhar a parede; bamboleava-se com urros surdos.

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Estremeceu. Na sombra tinira um ferro... Subitamente, num salto de tigre, achou-se no meio do quarto, firme, os dentes cerrados, empunhando o seu grande e largo facão de mato. O olhar imóvel desafiava o esqueleto impassível e o braço armado agitava-se nervosamente fazendo reluzir a lâmina afiada.

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Mãe Dina adiantou-se com um chocalhar de ossada. Ao passar do vento, os panos que lhe cobriam os ossos espadanavam e, às rajadas mais violentas, voavam farrapos negros para a noite. O assombro guardava um resto de pudor: com os dedos ajustava os trapos, encolhendo-se bem para que os olhos do filho não vissem a nudez do arcabouço, mas tinha de abandonar os panos para limpar o crânio das pastas de miolos que escorriam da fratura hiante.

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Outro passo da morta: acharam-se frente a frente. Raimundo não hesitou: deu um salto, o braço erguido, caiu de ímpeto sobre a ossada e, com rugidos ferozes, os beiços brancos de espuma, cravou-lhe repetidas vezes o facão no peito aberto, arrepiando-se, recuando quando a lâmina rangia nas costelas terrosas.

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Mãe Dina defendia-se, ameaçando-o com as mandíbulas que tatalavam8 macabramente e, de uma vez, conseguindo lhe apanhar o pulso, cravou-lhe os dentes com fúria, retalhando os músculos.

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Raimundo soltou um grito abafado e, de um pulo, ganhou a claridade, baixou os olhos para examinar a ferida e, à luz da lua, descobriu, com horror, na chaga gotejante, um referver de vermes moles.

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Repugnância a princípio, nojo depois, asco e, num crescendo rápido — o pavor. Arrepiava-se vendo multiplicarem-se, fervilhando, como em chaga de gado, as varejeiras da Morte. Sacudia-as com movimentos trêmulos e precipitados, umas caíam, outras vinham em rosca, a pino, enrolando-se, moles, lisas, úmidas, borbulhando do laivo em sangue como lesmas saindo de uma fenda.

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Seu rosto transfigurado contraiu-se num ríctus9 disforme e foi a mais e mais até à convulsão de toda a fisionomia: enrijou-se, trincando os dentes, a cabeça quase enterrada no tronco, numa deformidade de múmia. Olhava idiota, desvairado, com um solavanco de todo o peito. De repente, rompeu a chorar sem lágrimas, soluços secos e caiu de joelhos, ficou depois de gatinhas como um batráquio10, firmou-se, quis erguer-se, mas rolou de flanco numa estúpida inércia, rosnando: "Minha mãe! Minha mãe!"

​

Uma ideia gerou-se lhe no espírito: Mãe Dina queria-o para o túmulo, queria-o para o seu canto de terra, junto do pântano verde. Enterrado vivo! E, como se a cova se fosse, aos poucos, fechando sobre seu corpo, sentia a longa e pesada dispneia das asfixias e nem ar para fazer um grito! Nem ar para dar vida a uma palavra de misericórdia!

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O terror reanimou-o. A traiçoeira perfídia sugeriu-lhe um meio de defesa violento e forte; era o derradeiro esforço que ia tentar. Moveu-se e foi, quase de bruços, caminhando de pés e mãos como os símios, lento, lento, até junto do esqueleto. Estacou mirando-o; ergueu-se de improviso, abraçou-se com a ossada, apertou-a, apertou-a como se a quisesse esmigalhar, sem sentir a cesura dos ossos que se lhe enterravam pelas carnes do peito, rasgando-o, furando-o como punhais agudos.

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As forças abandonaram-no - ainda assim pôde sustentar a luta algum tempo, alentado pelo terror, com a bravura do desespero. Quando deu por si estava fora, entre as árvores, longe alguns passos da cabana, em meio do planalto. Quis recuar, mas o esqueleto, que lhe enterrava os ossos no corpo, não se desprendia. A dor do sofrimento arrancava-lhe rugidos e a ossada impassível, com os dentes podres quase colados a sua boca, com os braços passados pelo seu pescoço, retinha-o, atraía-o.

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Num assomo, levantou os olhos para o céu, chamando em seu socorro Nosso Senhor Jesus. Curvou-se como para ajoelhar-se, mas não pôde e, vencido pela desesperança, abalado, quis enternecer o espectro com palavras meigas e implorações piedosas, mas o esqueleto, longe de perdoar, irritou-se cravando-lhe os dedos pontiagudos na garganta. Alucinado, então, deitou a correr pela vertente abaixo, nu, crispado, indômito, com uma velocidade de energúmeno, arrastando a ossada tranco a tranco pelas pedras.

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Debalde escancarava a boca para gritar - o crânio branco inclinava-se e o seu grito era sufocado pela pressão das maxilas cheias de vermes.

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Corria, corria sempre, saltando vales, metendo-se pelos coivarais11 onde era mais espessa a treva, subindo escarpas com agilidade prodigiosa. Às vezes a terra mole e fofa das rampas fugia-lhe sob os pés em roldões, entretanto as suas pernas rígidas não estremeciam, não vergavam sequer e ele seguia por diante atolando os pés, jogando os braços, numa fuga ansiada, arrastando, como uma grilheta12, o esqueleto trágico.

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A concluir…

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Diz aí…

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