Perdido? Comece aqui. Se leu a parte anterior, continue…
VI
Com essa recordação trágica, revolvendo na alma todo o seu passado sombrio, Raimundo não conseguia aquietar-se. Irritavam-se lhe os nervos, encheu-se lhe o coração de sobressaltos. Parecia-lhe que de todos os lados bocas invisíveis soltavam gemidos abafados e que as sombras das roupas que pendiam das cordas, movendo-se nos muros, cresciam desmesuradamente, aproximando-se com o silêncio, com a leveza sutil das coisas fantásticas. Os olhos do enfermo não se podiam arredar da porta, fitos, secos, fuzilantes, magnetizados pelo terror. O coração precipitava os movimentos e os membros, em uma frouxidão de covardia, lassos, estirados, pareciam presos nos liames de imobilidade súbita.
Um ímpeto de força nervosa fê-lo sentar-se; correu a vista atônita, apavorada, por todo o recinto, com anseios de asfixia, apoiado às mãos, tremendo como se o agitasse um fluído; outro impulso atirou-o ao leito com a brutalidade de um empurrão violento.
Subitamente caiu uma grande sombra. A vela extinguira-se de súbito e, por todas as frestas do teto, pelos interstícios do sapê, pelas aberturas da taipa dos muros, entraram raios e nimbos1 da lua da meia-noite. A alma clara do silêncio invadira o aposento estriando a treva de palores, tornando-a mais lúgubre com a sua tatuagem diáfana. A calma pairava; os próprios grilos domésticos, surpreendidos pela invasão tenebrosa e pela visita triste do luar, calaram-se. O enfermo sentiu-se mais isolado ainda.
As visões começaram a surgir como se lhe subissem do coração em tumulto, precipitando-se, atropelando-se num revoluteio satânico. Eram lumes errantes que flamejavam no escuro, fulvos, vivos como os vagalumes: abriam-se em halos, retraíam-se e desapareciam repentinamente. Eram manchas, mais negras do que a própria treva, voando como enormes vampiros de um para outro ponto, alongando asas bífidas2 e, de momento a momento, num trino repetitivo, um grilo cantava. No ar espesso havia um frêmito de voos. Incerto e trêmulo, vacilando como ébrio, Raimundo ergueu-se do leito, descalço, arrepiado; abriu os braços e, às apalpadelas, cego no horror da sombra, foi experimentar a porta, ver se estava bem fechada, assaltado pela ideia de uma visita de bruxas.
De pé no meio do quarto, seminu, arrastando o lençol branco, tiritava gelado, suando frio como se estivesse sobre um campo de neve fustigado por um vento glacial. Sentia uma estranha sensação de abandono. O terror crispava-o e interiormente, como se o seu espírito tremesse, corriam, coriscavam frêmitos de assombro.
Colou o ouvido à porta, arfando, e percebeu distintamente a ânsia de um soluço — talvez o vento soprando ao longe nos penachos de bambu, talvez a água do rio rolando ardente por entre as penhas. Deteve-se contido, sem pestanejar sequer, vergado, as mãos nos joelhos, a cabeça encostada à porta como que auscultando a palpitação da noite e ouviu o estrépito rápido e ríspido da tritura de maxilas, dentes secos trepidando numa estralada infrene.
Empinou-se abrupto; a boca escancarada em hiato, o olhar gázeo3 e turvo, apalpando o escuro, titubeante e trôpego. Quis recuar, mas um poder estranho soldou-o ao posto horrível. Tomado de pavor, foi involuntariamente derrubando o busto e, de novo, encostou o ouvido à porta: o rilhar dos dentes aumentava, mandíbulas matraqueavam e, de vez em vez, a madeira rangia, estalava à pressão dos dentes que a trincavam. E, enchendo o silêncio, o áspero roque-roque espectral crescia assombroso e terrível.
Foi tão violento o pavor que o negro abateu pesadamente, rolando sobre um monte de panos úmidos que atulhavam um canto do quarto e, agachado, com o rosto na terra, pôs-se a espiar pela fresta da soleira da porta, tentando descobrir o vulto do duende que errava pelos campos com tamanho estridor.
Nada viu; mas de um salto, arrastando todos os trapos que encontrou ao alcance dos dedos crispados, pôs-se a calafetar as fendas, abafando a luz para que também o fantasma não conseguisse passagem. Mas o ruído crescia forte, estrépito, célere, igual ao que seus dentes faziam, na convulsão da febre que lhe voltara.
Fortificado, esperou, de cócoras, com as duas mãos à porta, opondo resistência aos empurrões da ossada perseguidora. Debalde, porém: seus pulsos enfraqueciam, o suor pingava em grossas gotas perenes, faltava-lhe o ar, os joelhos curvavam-se trêmulos, moles, e recuando, sempre com os braços estendidos, num gesto duro de repulsa, a boca escancarada, os olhos paralisados, ele caiu de costas, soltando, num suspiro estremecido, o nome da assassinada: "Mãe Dina!"
Foi como um apelo. A porta frágil estalou; mais forte rangeram os dentes, seguidos de um estralejar de ossada tripudiante. Raimundo ergueu-se medroso e feroz; encostou-se à porta, firmando-se nas pernas retesadas, os cotovelos fincados resistentemente. Tudo era em vão: a madeira fendia-se quase sem barulho, como se desfazendo – foi caindo aos poucos, tábua por tábua, roída pelos dentes que batiam sempre, até que nada mais houve e o céu e o campo, iluminados de modo pálido, ficaram defronte adormecidos num sono tranquilo, ao luar.
À claridade fria da grande lua, Raimundo viu, emoldurada pela porta, coberta de algas e de jias coaxantes, a boca gotejando a água podre do pântano, toda enroscada de ervas, o crânio fendido, a tirar lentamente, com os ossos dos dedos, partículas de miolos roxos e jias pequeninas, verdes, de olhos fosforescentes, Mãe Dina, a morta, com um braço erguido, hirto, os dedos apartados num gesto terrível de ameaça. Um grito formidável atroou a noite serena. A aparição quieta, sempre a esmigalhar miolos na ossaria amarela dos dedos, acendia, de vez em quando, nas órbitas escuras, o fulgor de dois fogos-fátuos. De momento a momento os dentes nus rangiam e os sapos que a cercavam, como se ela fosse a deusa lamacenta dos alagadiços, coaxavam arrastando-se pela terra ou aos saltos, com um bater oco dos ventres, em torno dos ossos dos seus pés podres.
Raimundo, ao fundo do quarto, agitado por tremores, caído de encontro ao muro, procurava pela parede o seu facão de mato ou o seu forte cajado de ponta de lança, mas a sua mão incerta apenas encontrava os farrapos pendentes. Os sapos, aos pulos, invadiam o interior, espalhando um fosforescer tíbio de chama sepulcral. Raimundo sentia já pelos seus pés arrastarem-se as jias viscosas, outras, esparramadas, fitavam-no com os bugalhos dos olhos. Ergueu a cabeça com ânsia e no céu grande, calmo, bordado de astros como um mapa suspenso dos mundos luminosos, as estrelas deformavam-se se esverdeando e, de repente, saltando de um para outro ponto, chatas, repugnantes, semelhando jias, espalharam pela tranquila noite luminosa um sidéreo coaxo soturno.
A avantesma4 aliciara todos os elementos da noite para um apocalipse de morte. Os astros puros concorriam, todo o céu cedera o seu contingente fulcite5 para o sabá6. As estrelas descreviam parábolas terríveis cortando a sombra de sulcos lampejantes; nuvens de formas bizarras, pandas, varriam o espaço como uma rolda de bruxas, precedidas por um cumulus7 tétrico, do feitio de um barco, de onde saltavam estrelas coaxando. O próprio vento que, a princípio, amainara, soprava com estrépito derrubando os ramos e dando vozes a toda a vegetação sombria que ululava pavorosamente. Raimundo, terrificado, encantoou-se, mas as suas mãos não cessavam de arranhar a parede; bamboleava-se com urros surdos.
Estremeceu. Na sombra tinira um ferro... Subitamente, num salto de tigre, achou-se no meio do quarto, firme, os dentes cerrados, empunhando o seu grande e largo facão de mato. O olhar imóvel desafiava o esqueleto impassível e o braço armado agitava-se nervosamente fazendo reluzir a lâmina afiada.
Mãe Dina adiantou-se com um chocalhar de ossada. Ao passar do vento, os panos que lhe cobriam os ossos espadanavam e, às rajadas mais violentas, voavam farrapos negros para a noite. O assombro guardava um resto de pudor: com os dedos ajustava os trapos, encolhendo-se bem para que os olhos do filho não vissem a nudez do arcabouço, mas tinha de abandonar os panos para limpar o crânio das pastas de miolos que escorriam da fratura hiante.
Outro passo da morta: acharam-se frente a frente. Raimundo não hesitou: deu um salto, o braço erguido, caiu de ímpeto sobre a ossada e, com rugidos ferozes, os beiços brancos de espuma, cravou-lhe repetidas vezes o facão no peito aberto, arrepiando-se, recuando quando a lâmina rangia nas costelas terrosas.
Mãe Dina defendia-se, ameaçando-o com as mandíbulas que tatalavam8 macabramente e, de uma vez, conseguindo lhe apanhar o pulso, cravou-lhe os dentes com fúria, retalhando os músculos.
Raimundo soltou um grito abafado e, de um pulo, ganhou a claridade, baixou os olhos para examinar a ferida e, à luz da lua, descobriu, com horror, na chaga gotejante, um referver de vermes moles.
Repugnância a princípio, nojo depois, asco e, num crescendo rápido — o pavor. Arrepiava-se vendo multiplicarem-se, fervilhando, como em chaga de gado, as varejeiras da Morte. Sacudia-as com movimentos trêmulos e precipitados, umas caíam, outras vinham em rosca, a pino, enrolando-se, moles, lisas, úmidas, borbulhando do laivo em sangue como lesmas saindo de uma fenda.
Seu rosto transfigurado contraiu-se num ríctus9 disforme e foi a mais e mais até à convulsão de toda a fisionomia: enrijou-se, trincando os dentes, a cabeça quase enterrada no tronco, numa deformidade de múmia. Olhava idiota, desvairado, com um solavanco de todo o peito. De repente, rompeu a chorar sem lágrimas, soluços secos e caiu de joelhos, ficou depois de gatinhas como um batráquio10, firmou-se, quis erguer-se, mas rolou de flanco numa estúpida inércia, rosnando: "Minha mãe! Minha mãe!"
Uma ideia gerou-se lhe no espírito: Mãe Dina queria-o para o túmulo, queria-o para o seu canto de terra, junto do pântano verde. Enterrado vivo! E, como se a cova se fosse, aos poucos, fechando sobre seu corpo, sentia a longa e pesada dispneia das asfixias e nem ar para fazer um grito! Nem ar para dar vida a uma palavra de misericórdia!
O terror reanimou-o. A traiçoeira perfídia sugeriu-lhe um meio de defesa violento e forte; era o derradeiro esforço que ia tentar. Moveu-se e foi, quase de bruços, caminhando de pés e mãos como os símios, lento, lento, até junto do esqueleto. Estacou mirando-o; ergueu-se de improviso, abraçou-se com a ossada, apertou-a, apertou-a como se a quisesse esmigalhar, sem sentir a cesura dos ossos que se lhe enterravam pelas carnes do peito, rasgando-o, furando-o como punhais agudos.
As forças abandonaram-no - ainda assim pôde sustentar a luta algum tempo, alentado pelo terror, com a bravura do desespero. Quando deu por si estava fora, entre as árvores, longe alguns passos da cabana, em meio do planalto. Quis recuar, mas o esqueleto, que lhe enterrava os ossos no corpo, não se desprendia. A dor do sofrimento arrancava-lhe rugidos e a ossada impassível, com os dentes podres quase colados a sua boca, com os braços passados pelo seu pescoço, retinha-o, atraía-o.
Num assomo, levantou os olhos para o céu, chamando em seu socorro Nosso Senhor Jesus. Curvou-se como para ajoelhar-se, mas não pôde e, vencido pela desesperança, abalado, quis enternecer o espectro com palavras meigas e implorações piedosas, mas o esqueleto, longe de perdoar, irritou-se cravando-lhe os dedos pontiagudos na garganta. Alucinado, então, deitou a correr pela vertente abaixo, nu, crispado, indômito, com uma velocidade de energúmeno, arrastando a ossada tranco a tranco pelas pedras.
Debalde escancarava a boca para gritar - o crânio branco inclinava-se e o seu grito era sufocado pela pressão das maxilas cheias de vermes.
Corria, corria sempre, saltando vales, metendo-se pelos coivarais11 onde era mais espessa a treva, subindo escarpas com agilidade prodigiosa. Às vezes a terra mole e fofa das rampas fugia-lhe sob os pés em roldões, entretanto as suas pernas rígidas não estremeciam, não vergavam sequer e ele seguia por diante atolando os pés, jogando os braços, numa fuga ansiada, arrastando, como uma grilheta12, o esqueleto trágico.
A concluir…
Diz aí…
Gostou? Odiou? Quer criticar, elogiar, trocar ideia? Fica à vontade!
Ah, tem mais…
Confira a seguir as notas e curiosidades “secretas” com detalhes sobre a publicação. Se elas não estão aparecendo para você, considere dar um upgrade na sua assinatura. De qualquer forma, obrigado pelo interesse e até mais. : )
Continue a ler com uma experiência gratuita de 7 dias
Subscreva a Serialletter para continuar a ler este post e obtenha 7 dias de acesso gratuito ao arquivo completo de posts.