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O Último Americano - Parte 4
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O Último Americano - Parte 4

Uma novela de John Ames Mitchell

mar 09, 2024
∙ Pago

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O Último Americano - Parte 4
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Ilustração da edição de 1902

Perdido? Comece aqui. Se leu a parte anterior, continue…


14 de Maio

Mais quente do que ontem.

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À tarde remamos rio acima e desembarcamos para uma curta caminhada. Não é seguro enfrentar o sol.

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Quanto mais aprendo sobre esses mehrikanos, menos interessantes eles se tornam. Nofuhl é da mesma opinião, a julgar pela nossa conversa de hoje, enquanto caminhávamos juntos. Foi assim:

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Khan-li: Quão parecidas as casas! Quão monótono!

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Nofhul: Assim também eram seus ocupantes. Eles pensavam da mesma forma, trabalhavam da mesma forma, comiam, vestiam-se e conversavam da mesma forma. Liam os mesmos livros, confeccionavam seu vestuário conforme as instruções, sem levar em consideração o tamanho ou a figura do indivíduo, e copiavam cada ponto das modas europeias.

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Khan-li: Mas as indumentárias apertadas dos europeus devem ter sido tristemente desconfortáveis no calor do verão mehrikano.

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Nofuhl: É provável. Caixotes rígidos de padrões variados enfeitavam as cabeças dos homens. Jaquetas curiosas com mangas bem justas comprimiam o corpo. Os pés latejavam e queimavam em invólucros justos de couro inflexível, e o linho entesado por meios artificiais estava bem preso ao pescoço.

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Khan-li: Alá! Que idiotas!

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Nofuhl: Até assim são considerados.

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Khan-li: A que qualidade de suas mentes atribui tal amor ao sofrimento desnecessário?

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Nofuhl: Era o desejo deles ser como os outros. Um sentimento natural em um povo vulgar.

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15 de Maio

Um vento favorável do oeste hoje. Levantamos âncora e navegamos pela margem oriental da cidade. Fiz isso porque Nofuhl acredita que a parte superior da cidade é muito mais rica em relíquias do que a parte inferior, a qual parece ter sido destinada para fins comerciais. Navegamos perto de um dos grandes monumentos no rio e não conseguimos adivinhar seu significado. Muitas hastes de ferro ainda pendem do topo de cada uma das estruturas. Como ambas estão alinhadas uma com o outra, pensamos, a princípio, que as hastes talvez tivessem se conectado outrora e servido como uma ponte, mas logo notamos que estavam muito distantes.

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Viemos a ancorar a cerca de cinco quilômetros do velho atracadouro. Rio acima e abaixo, ao norte, sul, leste e oeste, as ruínas se estendem indefinidas, aparentemente infinitas.

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Estou aflito por Lev-el-Hedyd. Ele desembarcou e não voltou do litoral.

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Agora já passa da meia-noite.

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16 de Maio

Alá seja louvado! Meu querido camarada está vivo! Desembarcamos mais cedo esta manhã e iniciamos a busca por ele. Passávamos diante da construção que traz na frente a inscrição:

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... DORF ASTORIA1

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Foi quando ouvimos a voz dele a ecoar do interior em resposta aos nossos chamados. Entramos e, depois de escalar a escadaria arruinada, o encontramos sentado no andar acima. Ele tinha uma perna inchada por conta de uma torção feia, e vários hematomas. Enquanto nossos amigos construíam uma maca para carregá-lo, nós conversamos. As paredes ao nosso redor exibiam vestígios de ter cercado outrora um salão de alguma beleza. Enquanto vagava por ali, eu abri a porta deteriorada de um velho armário e vi nas prateleiras apodrecidas muitas peças de vidro e cerâmica de excelente manufatura. Pegando uma em minha mão, uma pequena taça de vinho, aproximei-me de meu camarada chamando sua atenção para a haste delgada e forma curiosa. Quando os olhos dele caíram sobre a taça, arregalaram-se de espanto. Também observei um tremor em sua mão quando a estendeu para tocá-la. Então ele me narrou sua aventura maravilhosa da noite anterior, mas dizendo antes de começar:

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— Tu sabe, ó príncipe, que não acredito em visões, e eu nunca contaria tal história não fosse pela descoberta dessa taça. Eu bebi de uma parecida na noite passada, oferecida por uma mão fantasmagórica.

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Eu teria sorrido, mas ele falava a sério. Enquanto movia-me para sentar ao seu lado, ele disse:

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— Prove primeiro, ó mestre, as uvas penduras naquela parede.

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Fiz como pedido e, para minha grande surpresa, descobri que tinham um sabor requintado, mais fino ainda do que o fruto cultivado na pérsia, mais doce e delicado, de natureza diferente das uvas selvagens que andávamos comendo. Meu espanto pareceu encantá-lo, e ele disse com uma risada:

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— As uvas são impossíveis, mas existem; mais absurda ainda é a minha história! – e então ele narrou sua aventura. Ei-la:

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O QUE LEV-EL-HEDYD VIU

Ontem, após o anoitecer, enquanto se apressava rumo à Zlotuhb, ele caiu com violência sobre alguns blocos de pedra, deslocando o tornozelo e ferindo-se. Incapaz de caminhar, ele mancou até a construção para aguardar nossa chegada pela manhã. Os uivos de lobos e outras feras selvagens que rondavam a cidade o levaram, por segurança, a escalar as ruínas da escadaria até o andar de cima. Ao se acomodar em um canto do salão, suas narinas foram saudadas com o aroma delicioso das uvas acima de sua cabeça. Para sua surpresa, descobriu que eram boas e as comeu com voracidade. Logo depois caiu em um sono que perdurou por algumas horas, pois quando despertou a lua estava alta no céu, as vozes dos lobos se calaram e a cidade estava silenciosa.

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Deitado em devaneios, absorto demais nos próprios pensamentos, pouco a pouco ele se deu conta de mudanças misteriosas, quase furtivas, acontecendo ao redor. Um teto decorado parecia estar se fechando sobre o salão. Espelhos e paredes tingidas surgiram lentamente no lugar de tijolos destroçados e cobertos de heras. Um brilho tênue ficou mais forte e intenso até preencher a grande sala com uma luz ofuscante. Então aos poucos surgiu uma mesa de formas curiosas, com flores e inúmeros pratos de vidro e porcelana, como se preparada para um banquete.

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De pé ao redor da sala ele viu homens solenes com rostos imberbes, todos de preto, e cujas vestes tinham aberturas triangulares na altura do peito para deixar à mostra a camisa abaixo. Logo descobriu que esses personagens eram criados.

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Enquanto ele observava em perplexidade, outras figuras entraram, duas a duas, tomando seus lugares à mesa. Os que chegaram depois, sessenta ou mais, esses eram homens e mulheres caminhando de braços dados, elas usando vestes ricas de costura desconhecida e cintilando com pedras preciosas. Os homens se vestiam como os criados.

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Eles comeram e beberam e gargalharam, e formaram uma cena brilhante. Lev-el-Hedyd ficou de pé e, movido por uma curiosidade a qual não esforçou-se para resistir, – pois é um companheiro imprudente e destemido – ele coxeou até a sala.

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Olharam-no surpresos, e pareceram se divertir muito com sua presença. Um dos convidados, um jovem alto com bigodes louros, aproximou-se dele, oferecendo um recipiente delicado de cristal cheio de um fluído borbulhante.

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Lev-el-Hedyd aceitou.

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O jovem ergueu outro recipiente da mesa e, com um gesto ligeiro, como em uma saudação, ele disse as palavras às quais meu camarada compreendeu, ainda que jurasse ser de um idioma desconhecido para ele:

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— Podemos nos encontrar novamente no quarto dia do mês que vem.

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Então bebeu o vinho, e Lev-el-Hedyd fez o mesmo.

​

Em seguida os outros sorriram como em resposta à sagacidade de seu camarada, todos exceto as mulheres, cujos rostos afetuosos transpareciam mais compaixão do que felicidade. O vinho subia-lhe à cabeça enquanto bebia e as coisas ao seu redor pareciam girar e rodar. Composições de música fantástica explodiram em seus ouvidos: então, todas em ritmo, as mulheres se uniram aos parceiros e rodopiaram em torno dele com passos despreocupados. E, movendo-se junto, o cérebro latejante parecia dançar na cabeça dele. Estremecendo e oscilando com a melodia, a sala foi escurecendo e subindo de vista. A música morreu com suavidade.

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Houve silêncio novamente, a lua acima brilhando serena sobre as paredes cobertas de hera.

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Ele caiu no piso como um bêbado e não despertou até que nossas vozes chamassem por ele.

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Este foi seu relato.

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Ele tem uma mente lúcida e não é mentiroso, mas tantas uvas em um estômago vazio e sofrendo a febre de um membro inchado podem muito bem explicar tudo.

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Carne de urso para o jantar.

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Esta manhã, por volta do meio-dia, Kuzundam, o segundo oficial, vagou à nossa frente, e entrou em uma grande construção perseguindo um coelho. Ele estava prestes a descer para o porão quando avistou, bem perto dele, um urso subindo vagaroso pelas escadas de mármore. Kuzundam não é covarde, mas ele se virou e correu como nunca. O urso, que parecia ter uma natureza esportiva, também correu e o perseguiu de perto. Para a sorte do meu amigo, estávamos por perto, caso contrário, em vez de carne de urso, este é que teria almoçado Kuzundam calmamente nos corredores escuros do "FIFTH AVENUE HOTEL"2.

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Continua…

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