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13 de Maio
Uma descoberta espantosa esta manhã.
Ao atracarmos em um ponto mais alto do rio, exploramos uma parte da cidade onde as construções tem aspecto diferente das que vimos ontem. Nofuhl as considera habitações dos ricos. Na forma, eles são apenas tijolos enfileirados , todos muito semelhantes, desinteressantes e monótonos.
Notamos uma construção onde portas e janelas ainda estavam intactas, mas deterioravam-se de suas dobradiças fantásticas. Alguns golpes fortes derrubaram as portas externas em uma pilha empoeirada, e quando pisamos no piso de mármore nossos olhos avistaram algo inesperado. Mobília, estátuas, quadros encardidos em molduras despedaçadas, imagens de prata e bronze, espelhos, cortinas, havia de tudo ali, mas em vários estágios de deterioração. Arrombamos as janelas de ferro e deixamos a luz penetrar nos cômodos selados há séculos. No primeiro havia um tapete da Pérsia! Desbotado, devorado por traças, arruinado em algumas partes, parecia implorar com olhos moribundos para que o levássemos dali. Meu coração amoleceu diante do tapete antigo, e captei um olhar tolo nos olhos de Lev-el-Hedyd.1
Enquanto subíamos as escadas mofadas até o andar superior, expressei surpresa por ver tecido e madeira preservados por tantos séculos, e disse ainda:
— Esses mehrikanos não eram tão indignos quanto pensávamos.
— Pode ser, – disse Lev-el-Hedyd, — mas o tapete persa é de longe o objeto mais recente que vimos, e talvez já fosse antigo quando o compraram.
No andar de cima entramos numa câmara a meia-luz, espaçosa e outrora mobiliada com luxo. Quando Lev-el-Hedyd empurrou as janelas e afastou as cortinas rasgadas sobressaltamo-nos com o que vimos.
Sobre uma cama larga no centro do quarto havia uma forma humana, o cabelo longo e louro ainda preso à cabeça. Era mais uma múmia do que um esqueleto. Ao redor, sobre a cama, havia pedaços em decomposição dos lençóis outrora brancos que a cobriam. Nos dedos da mão esquerda cintilavam dois anéis que chamaram nossa atenção. Um possuía um diamante de grande valor, o outro era composto de safiras e diamantes arranjados de forma curiosa. Ficamos em silêncio por um instante, fitando a figura, pesarosos.
— Pobre mulher, – eu disse, — deixada assim para morrer sozinha.
— É mais provável, – disse Nofuhl, — que ela já estivesse morta, e seus companheiros, talvez partindo às pressas, não puderam queimar o corpo.
— Eles queimavam seus mortos? – indaguei. — Em minha história estava escrito que eles os enterravam no solo como batatas e os deixavam apodrecer.
E Nofuhl respondeu:
— Foi assim por um tempo, mas depois, à medida que se tornavam mais civilizados, o costume foi abandonado.
— É possível que esta mulher esteja aqui há quase mil anos e ainda tão bem preservada?
— Eu também estou surpreso, – disse Nofuhl. — Só posso atribuir isso à extrema aridez do ar absorvendo os fluídos corporais e retardando sua decomposição.
Em seguida, erguendo com ternura em sua mão um pouco do cabelo louro, ele disse:
— É provável que ela fosse muito jovem, mal na casa dos vinte.
— As mulheres deles eram formosas?
— Elas eram lindas, com formas graciosas e rostos adoráveis; um colírio para os olhos; também eram alegres e vivazes.
Ao que clamou Lev-el-Hedyd:
— Eis as primeiras palavras que proferiste, ó Nofuhl, que me levam a lamentar a extinção desse povo! Há sempre um lugar em meu coração para uma donzela recatada.
— Então que teu pesar seja breve, – respondeu Nofuhl, — pois as damas mehrikanas não se encaixavam nessa descrição. O recato era uma arte que elas praticavam pouco. A timidez que tu tanto ama em uma donzela persa para elas era algo desconhecido. Nossas filhas acanhadas não tem qualquer semelhança com esses produtos ocidentais. Elas percorriam as ruas públicas com olhares itinerantes e rostos despudorados, conversando livremente tanto com homens quanto com mulheres, audazes no falar e irrestritas na conduta, indo e vindo como bem lhes aprouvesse. Conheciam bastante sobre o mundo, administravam seus negócios, e planejavam os próprios casamentos, muitas vezes mudando de ideia e casando-se com outro que não o noivo escolhido.
— Basmala2! E os homens eram capazes de amar essas coisas? – exclamou Lev-el-Hedyd com muito sentimento.
— É o que parece.
— Mas devo dizer que a noiva mehrikana tinha o frescor de um figo seco.
— De fato tinha, – disse Nofuhl; — mas quem conhece apenas o figo seco não sente falta da fruta fresca. A culpa, porém, não era das donzelas. Criadas como garotos, com os mesmos estudos e desenvolvimento mental, a porção feminina da natureza delas desapareceu pouco a pouco na medida em que suas mentes se expandiam. A vitalidade do intelecto era o objetivo da educação de uma mulher.
Então Lev-el-Hedyd exclamou com grande desgosto:
— Louvado seja Alá por ajudar a exterminar tal povo! – e ele se afastou da cama, começando a vasculhar o aposento. Em um instante ele correu de volta até nós, dizendo:
— Eis mais joias! E também dinheiro!
Ansioso, Nofuhl pegou as peças:
— Dinheiro! Dinheiro nos revelará mais do que as páginas da história!
Havia moedas de prata de diferentes tamanhos e duas pequenas peças de cobre. Nofuhl as estudou minuciosamente:
— A data mais recente é de 1957, pouco menos de mil anos atrás; mas a peça pode ter estado em circulação alguns anos antes da morte dessa mulher; também pode ter sido cunhada no próprio ano de sua morte. Traz a cabeça de Denis, o último dos ditadores Hy-Bernyanos3. A raça deve ter sido extinta antes do ano 1990 de sua era.
Então eu disse:
— Nunca nos contaste, ó Nofuhl, a causa do desaparecimento deles.
— Houve muitas causas, – ele respondeu. — Os mehrikanos em si eram de origem inglesa, mas povos de todas as partes da Europa vieram para cá em grande número. Embora os colonos originais fossem vigorosos e resistentes, o efeito do clima sobre as gerações seguintes foi fatal. Eles se tornaram magros e franzinos, com cabelos escassos, dentes frágeis e problemas digestivos. Doenças nervosas desconhecidas por nós provocaram estragos mortais. Entre 1945 e 1960, segundo o último censo do qual restou algum registro, a população caiu de noventa milhões para menos de doze milhões. As mudanças climáticas, do tipo que nenhuma outra terra experimentou, elas se iniciaram naquele período, e concluíram em menos de dez anos uma obra facilitada pela natureza agitada e vidas corridas deles. Em um mesmo dia, a temperatura podia variar do calor escaldante ao frio do inverno. Nenhuma compleição poderia resistir isso, e este continente vasto se tornou uma vez mais um ermo vazio.
Muito mais ele nos contou de natureza semelhante, mas estou sonolento demais para continuar escrevendo. Exploramos o resto da mansão, encontrando muito itens de interesse. Fiz com que vários objetos fossem carregados a bordo da Zlotuhb. (Estes objetos estão agora no museu da Faculdade Imperial em Teerã).
Continua…
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