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IV
Estirado, imóvel, com os braços por baixo da cabeça, Raimundo não desviava os olhos de uma fresta aberta no sapê, através da qual via reluzir tremulamente, no céu alto e profundo, perdida na treva noturna, uma grande estrela clara. Longe de todo o pensamento, na inércia flácida da modorra1, ia adormecendo quando lhe pareceu ouvir, destacando-se dos vagos rumores de fora, familiares aos seus ouvidos, a voz meiga e suave de alguém que cantava, enchendo de alegria a noite com o quebranto lânguido de uma lírica de campo. Aprumou a cabeça, conteve a respiração e ouviu bem, numa vocalização clara, estes versos de queixa e de melancolia:
Quem sentir na alma a ferida Aberta pela saudade, Não conte ter mais na vida Descanso e tranquilidade.
Com a boca entreaberta, os olhos fixos no teto, ele ouvia os sons da cantiga num ritmo preguiçoso e doce, repassada de uma prolongada tristeza até o fim, ao cair da última palavra.
Depois foi um suspiro de desafogo, um "ai!" cansado, solto em ofego e, quase ao mesmo tempo, a porta tremeu, sacudida; tremeram as roupas penduradas nos muros, a tramela1 rangeu e assomou no limiar uma mulatinha traquina e risonha, garganteando as notas do estribilho.
Raimundo voltou-se, cerrou as pálpebras e, com a mão à altura dos olhos, em para-luz2, espiou e pela porta entreaberta viu rapidamente, como em fuga, o céu sereno, recamado de estrelas, a lua claríssima e tufos balouçantes de árvores escorrendo brancuras lúcidas. Mas a porta bateu empurrada pelos braços carnudos da mulata, que ficou a dois passos do catre, tirando com vagar uma toalha da cabeça, que preservava os seus cabelos de azeviche3 do sereno da noite e, lânguida, fitou o enfermo com um olhar morno e voluptuoso, sorrindo, com duas covinhas nas faces.
— Que está olhando? Não me conhece? Parece que nunca me viu! - E de improviso: — Está melhor?
Raimundo meneou a cabeça tristemente, sem apartar os olhos da moça.
— Se você não come, Mundico...
Com esforço o enfermo ergueu-se sobre os cotovelos e recostou-se ao palheiral4 que lhe servia de travesseiro, atulhou o cachimbo, acendeu-o, perguntando por entre bafos de fumaça:
— Que há de novo?
— Que há? Que há de haver: peste. Ainda hoje a Toma enterrou o filho. Ficou como doida, coitada! O pequeno morreu nos seus braços; e sentenciou:
— E dizem que pega. - Sentou-se em um mocho e, desabotoando o corpinho de cassa, continuou: — Tio Cândido também lá foi.
— Duas febres?
— Não sei. Morreu trabalhando. Foram achar ele entre as taquaras5 das suas gaiolas, caído de bruços, com a cabeça enterrada no chão. Venâncio disse que foi de velhice.
Raimundo guardou silêncio, voltou a contemplar a estrela, mas de repente, batendo com o cachimbo à beira de um caixote, perguntou:
— Era você que vinha cantando?
— Então? Era eu, sim. - E, inclinando-se, abriu um baú de couro e foi amontoando roupa branca sobre um velho pano de algodão, cantarolando sempre, à claridade lívida da vela.
— Pra que é isso, Lucinda?
— Vou mudar de camisa.
Raimundo franziu o cenho, ferido pelo ciúme. Perguntou desconfiado:
— Pra quê?
— Pra quê?! - Retrucou asperamente a moça desembrulhando as peças com mau modo:
— Pra quê?! Então hei de me deitar assim, com a roupa suada? E de pé, despindo desajeitadamente o corpinho, tomando a camisa pelo crivo do cabeção6, sacudiu-a, tufou-a, mostrando as manchas:
— Olha só. Nem parece roupa de gente. É gordura só.
O morim7, recaindo no colo, ficou alto acusando o contorno rijo dos seios, com um remate mais saliente dos bicos, descendo em linha curva, num constante e túrgido8 ondular macio. Um cheiro forte de erva desprendia-se das roupas e a sombra da mulata, quebrando-se no ângulo do muro, corria em oblíqua pelo teto e, obscurecendo uma parte do quarto, bailava com o frémito incessante da língua acesa da vela que espirrava de momento a momento, espichando-se num morrão negro e fuliginoso9.
— Vira a cara, Mundico. Deixa eu mudar a camisa.
— Ora! - Fez o enfermo, enjoado.
— Vira a cara! - Tornou a moça choramingando, dengosa.
— Deixa de luxo! - Rugiu furioso, dando um murro no catre. — Parece que nunca te vi nua. Um diabo que se despe à vista de todo mundo.
— Malcriado! - Rosnou Lucinda, e meteu-se para um canto. Curvando o busto, safou a camisa suja, prendeu-a nos sovacos para esconder os seios, com o queixo enterrado no colo, uma ponta de crivo nos dentinhos, estendendo os roliços braços nus para abrir a camisa lavada, de onde caíam pequeninas folhas secas e passou-as rapidamente pela cabeça, enfiou os braços, deixando escorregar a camisa suja ao longo do corpo, sacudiu-se e, alisando os cabelos, recomeçou a cantar:
Meus olhos choram mais água Do que qualquer riachão! E não há seca que os seque Porque não morre a aflição.
Num arranco de despeito, Raimundo esbravejou:
— Cala a boca aí! Ah! Também! Tanta cantiga! Nem vendo a gente doente!
— Minha cantiga não mata ninguém.
— Ah! - E voltou-se para a parede, amuado.
Ela estacou de cólera, mordendo os beiços, bamboleando o corpo; por fim, acalmando-se, chegou-se à luz com a saia, vestiu-a, alisou a camisa, fê-la correr corpo abaixo, pelo ventre, pelos quadris e, farejando os ombros rapidamente, voluptuosamente, com os lábios franzidos em bico, respirou forte balbuciando:
— Agora sim. - Completando o vestuário com um paletó de cambraia com entremeios, alisou de novo os cabelos e, passando a toalha pela cabeça, disse alto, resolutamente: — Até amanhã.
Raimundo voltou-se de repente e, encarando-a, perguntou:
— Onde você vai?
— Vou-me embora.
— Não! - Rugiu o vaqueiro impetuosamente, com os olhos como duas brasas: — Que é que você vai fazer?
— Uai! Que é que vou fazer? Gentes... Parece tolo. - E naturalmente: — Vou dormir, pois então?
— Antigamente, enquanto eu podia gastar, você dormia aqui, agora...
— Mau! Mau!
— É sim: eu sei. - E triste: — Pois vai!
Mas, arrependido ao mesmo tempo, enterneceu-se, ameigou-se:
— Vem cá, anda! E estendeu um braço para recebê-la. Ela, porém, compondo a roupa, o rosto baixo, sorrindo, murmurou com um beicinho:
— Eu, não!
— Ora, Lucinda... - Implorava Raimundo abrasado, com a voz trêmula.
— Você está doido, Mundico? Quero lá sair daqui com a peçonha da peste. Deus me livre! E, de repente, dando uma volta: — Até amanhã!
— Não! Vem cá!
— Que é?
— Vem cá! Escuta!
Lucinda sacudiu a cabeça negativamente. Raimundo fitou-a com um olhar cheio de ódio e disse:
— Já sei... Hoje é com Esaú. - E, franzindo o beiço em comissuras de escárnio: — Não tem vergonha... um negro de roça.
— Que Esaú! — Gritou violentamente a mulata como se um chicote a tivesse ferido.
— Já se viu um homem doido assim? Só porque vim mudar a camisa já está o diabo dizendo que vou dormir com outro. Pensa você que não tenho mais o que fazer? Ora, meu amigo... - E deu-lhe as costas. — Se eu não tivesse o meu baú neste maldito quarto, não punha os pés aqui. Não, que não hei de ser tola toda a vida. Amanhã acaba-se tudo, mando buscar o que é meu para não andar com feitores tomando conta do que faço. Quem me podia governar já Deus tem na sua glória.
E apanhando o rolo de roupa que tinha aos pés, mostrou-o:
— Você queria que eu me deitasse com esta imundície no corpo? Não que, graças a Deus, aprendi a ser limpa. - E resmungando: — Esaú... Esaú...
Voltou-se num acesso de ira:
— O que você quer sei eu... Mas isto... Iche! - E soltou um muxoxo escarninho: — Diabo de homem! Nem doente... Não faltava mais nada senão vir eu mesma buscar o mal por minhas mãos.
— Eu já estou bem...
— Muito! Está aí ardendo em febre.
— Mas o que tem isso? Desde que não pegue... A Toma não esteve com o Nazaré nos braços?
— Sim, mas era seu filho.
Houve um longo silêncio. Os olhos de Raimundo reluziam com um fulgor de chamas, o seu largo peito ossudo arfava em ânsia constante, as narinas, sofregamente dilatadas, palpitavam.
— Um beijo só, Lucinda, e eu fico bom.
— Ô, Senhor, que homem! - Áspera e aborrecida, adiantou-se até o catre, entregou a face de um moreno fino e disse em balbucio: — Tá!
O negro, ardendo em luxúria como um fauno10, ergueu-se a meio e com as mãos ambas travou-lhe de um pulso, puxou-a. Ela gritava: "que a estava machucando, que a deixasse, não fosse bruto, tivesse modos!". Ele não ouvia, procurava-lhe a boca vermelha com ânsia, ofegando, mas Lucinda, fugindo sempre, com o rosto voltado, de lábios cerrados, resistia até que, com um empuxão mais forte, libertou-se, indo cair de encontro à parede, extenuada.
— Ó! Você não tem juízo, Mundico? Isso é até maldade.
Raimundo, flácido, sem energia, com os beiços juntos, implorava beijos. Lucinda, sacudindo a roupa, evitava-o:
— Na boca, não!
— Você tem nojo de mim?
— Não é nojo -, afirmou complacente. — Tenho medo da moléstia. Na boca não, sim?
— Então não quero.
— Pois não queira. Que teima! Para eu pegar a peste!
— Vai-te embora!
— Vou mesmo. — Dirigiu-se para a porta e, já com a mão na tramela, acenou, faceira, um adeus:
— Até amanhã. - O negro rosnou um desaforo. — Come, porco!
E ela saiu batendo com a porta: antes, porém, de fechá-la, falou para dentro:
— É melhor que você reze por mãe Dina que hoje faz um ano de morta. - E deu volta à tramela.
Raimundo, furioso, atirou-lhe um impropério. Uma gargalhada retumbou no silêncio e, logo depois, a voz meiga de Lucinda recomeçou a cantiga que foi, aos poucos, morrendo, até que nada mais se ouviu, interrompendo, de chofre, o novo silêncio, o mugido angustioso da vaca solitária.
Lembrou-se, então, do seu gado, a nutrida ponta de garrotes rijos, todos de fama, torcedores de matas, catingueiros sabidos. Ê! Bichos... Boiadinha de confiança aquela! Quando era para tocar aquele tumulto, que de sustos na gente da redondeza e quanto arrojo da rapaziada limpa.
Aquilo é que era! Arranca daqui, bem estribado, investe dali, espera de frente, ferra, atropela, arriba e larga na carreira solta por matos e gargantas, sustenta o choque do bicho, com a vara feia à carranca e toca! Ê! Boi... E mete no bando e vira.
Agora a toada, e lá vai ao passo miúdo dentro do pó dourado estrada afora, rompendo o caminho, com a alegria das flautas e o descante11 bravo da parceirada. Voltou-se no catre e, enrugando a fronte, pensando, de novo, na mulata arisca, atirou um murro à parede, esfarelando o adobe12:
— Deixa-te estar, mocambeira13... Só se eu não me levantar desta cama. Não, que não sou poia14 como o outro que você trazia minguado, chorando no rastro do teu vestido. Comigo ou é ou não é: no prato em que eu como ninguém bota a mão, isso nem que Deus mande. Nós havemos de ver.
Estirou-se no catre cruzando as pernas, com os braços por baixo da cabeça, imóvel. Ardiam-lhe os olhos - fechou-os em modorra, mas despertou subitamente sobressaltado com um pesadelo - ia rolando por um desfiladeiro de rochas escarpadas, ferindo-se nas arestas agudas das pedras, para um escuro e profundo abismo. Respirou ansiado e acalmava-se quando um berro o fez estremecer - era a vaca saudosa na caiçara da colina.
Continua…
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