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V
Esse mugido lúgubre, isolado na tranquilidade do silêncio, impressionou-o, bem que ele soubesse de onde vinha e conhecesse como ninguém, a Fula, que fora metida num cercado, longe dos bois e dos novilhos que ela varava a cornadas terríveis quando estava de cria e os apanhava ao alcance do seu chifre fino e reto, tão temido e celebrado que até entrava nas trovas dos campeiros da casa. Ele bem sabia que era a Fula, sozinha e triste, que mugia na prisão com saudade do bezerro, mas, certo pressentimento, as últimas palavras de Lucinda: "É melhor que você reze por mãe Dina que hoje faz um ano de morta..." encheram-no de apreensões, filhas de um terror secreto.
Temia as sombras, o mesmo sarrido1 da sua respiração augusta fazia-lhe medo. Teve ímpetos de fugir, de saltar do catre para o monte, descer até a primeira senzala onde houvesse gente, vozes, rumor de vida, enfim. E, apesar de todos os esforços que fez para por cobro aos assaltos pávidos do medo, para desviar os pensamentos sinistros, pôs-se a recapitular fatos de muito tempo sucessivamente, continuadamente, tendo de todos a visão exata, a impressão perfeita como se retrocedesse no tempo, voltando a viver a mesma vida extinta, não na ilusão de um sonho, mas com a intensa sensação de uma realidade visível.
Fechou os olhos, cobriu a cabeça, mas na sombra asfixiante e morna, surgiu primeiro Albina: uma menininha de nove anos, magra, doentia, de olhos tristes e úmidos, arrastada pelo seu braço forte à beira d'água, na areia, entre os cajueiros, a gemer, maculada de sangue, com as duas mãozinhas no ventre nu, exposto à lua, num abandono doloroso, depois de uma luta em defesa do seu pudor e da sua virgindade enferma, sem socorro, num ermo sombrio, enquanto ao longe os negros, em samba, batucavam com estrépito rouco nos túmidos tambus2.
Estremeceu, sacudiu as cobertas como para enxotar a visão e percorreu o quarto todo com um lance de olhos, alucinado, febril, murmurando nervosamente: "Diabo! Diabo!"
Da zoada do vento que vergava os ramos, partiam silvos como se demônios aéreos andassem pelos tufões, aos rebolos, dançando a ronda gnômica da noite e no sapê do teto, para aumentar-lhe ainda mais o pavor, corriam e guinchavam timbus.
Um nome foi, aos poucos, subindo aos seus lábios e impôs-se com a violência das cheias escachoando3 nas represas; ele resistia, fugindo a pronunciá-lo, mas baldado foi o esforço - o nome saiu-lhe da boca, involuntário como suspiro "Mãe Dina!"
Torceu-se de ódio e esmurrou desesperadamente a parede num acesso de indignação contra o seu espírito fraco. Forçou a coragem, tentou chamar o ânimo, mas abateu no terror, vencido, inerte, cheio de recordações, qual delas mais trágica. Incoercível, latente, o nome fatal ralava-lhe a alma como o eco de uma maldição. Súbitos tremores sacudiam-no em arrepios e os olhos, muito abertos, anuviados de assombro, ardiam fosforejantes como as pupilas dos tigres.
A vela gasta tremia no gargalo da garrafa alimentada por um pouco de carnaúba que escorria em lágrima escura para o bojo e do bojo ao chão; a chama crepitava estertorando. A claridade oscilava numa intermitência de relâmpagos e sombras; nos cantos a penumbra ia-se tornando carregada. As roupas, estendidas nas cordas, bailavam e as suas silhuetas estampadas nos muros, tomavam formas extravagantes de espectros bizarros - uns de braços pendentes, caídos bambos para a terra como se fossem mergulhar em túmulos, outros agitando pernas em estrebuchamentos de morte; e o baú alargava uma grande mancha ferruginosa que vinha até o leito como a invasão da treva chegando aos poucos, lenta traidora.
E "Mãe Dina! Mãe Dina!" sempre como um remorso.
Subitamente, enterrando o rosto nas esteiras, com os braços pela cabeça, o ventre na palha do leito, Raimundo, sem poder evitar a recapitulação tenebrosa, viu distintamente todo o seu negro crime:
No arrozal verde alegre, junto de um pântano onde as jias4 moles, de olhos esbugalhados, coavam o sol, entre as ervas floridas, a negra, sentada, com a sua colheita de inhame, a cabeça nua ao sol, fumava melancolicamente com os olhos perdidos no horizonte esbraseado que rematava aquela campina rasa, ponteada de toros adustos, de onde o vento levantava nuvens pardas de cinzas que restavam das queimadas de agosto.
Errando ao acaso pela vizinhança do pasto onde os seus bois, abafados pelo calor do meio-dia sufocante, ruminavam deitados num silêncio, e numa imobilidade de tela, Raimundo, que andava à cata de amores rondando os tejupás5 da roça, deu de frente com a velha.
— Bênção, Mãe Dina!
Levantando a cabeça enrolada em um pano de riscado, à maneira de trunfa, a negra cruzou no ar a bênção e cuspindo para um lado, resmungou:
— Bênção de Deus!
Raimundo, de pé diante dela, interrogou-a sobre os seus negócios, perguntando com interesse pela criação e pela cultura da sua roça de milho. A velha desceu o olhar dizendo:
— Vai como Deus quer...
— Vosmecê como que tem, mãe, podia viver descansada, se quisesse. Pagava a nossa liberdade e íamos trabalhar juntos num canto qualquer. Vosmecê sabe: não há trabalho que me faça medo. Com o que sei fazia uma casinha para nós dois e, em pouco tempo, podíamos ter com que passar os dias.
A velha conservou-se imóvel.
— Tenho um conhecido que se ofereceu para tratar da minha liberdade. Falo com ele sobre vosmecê. Se vosmecê quiser...?
Dina, calma, sempre a fumar o seu pito, sacudiu a cabeça negativamente.
— Por quê? Mas vosmecê não pensa em deixar esta sina de cativeiro?
— Nasci assim! — disse com acento doloroso, erguendo os ombros.
— Mas olhe que a velhice está aí. Vosmecê já não pode com o cabo de uma enxada.
— Quem? — exclamou com arrogância. — Ainda não pedi a ninguém para fazer a minha tarefa.
— Mas não é melhor que a gente trabalhe para nós? Não é melhor ser livre?
— Ora! Há muito cativo no mundo de Deus...
— Se há, é que nenhum pode fazer como vosmecê, se quisesse... Os outros não têm posses.
— E eu? Que é que eu tenho? Trapos.
— E dinheiro, — concluiu o filho.
A negra abriu muito os olhos num pavor de usurária e, franzindo a fronte, encarou Raimundo:
— Dinheiro! Ah! Eu tenho dinheiro? Pois sim... - E serenamente: — Melhor para mim. Se tenho é meu.
— E meu, que sou seu filho.
— Anh! Meu filho! Tu?! — E sorriu com amargura. — Meu filho por causa do dinheiro, mas para vir à roça comigo ao sol e à chuva você não é meu filho. Para cuidar de mim quando adoeço, para me trazer um caldo quando o mal me atira no fundo de uma cama, para me acompanhar quando gemo só, sem alguém que me acuda, você não é meu filho. Para roubar... Para roubar é que você é.
— Roubar, não, porque se eu quisesse já tinha feito.
— Isso sei eu. Negro da tua laia é capaz de tudo. Ainda não esqueci o murro que você me deu... Mas se há Deus no céu...
— Ora, aí vem vosmecê com os seus ditos. O melhor é decidir de uma vez. Quer ou não quer?
— O quê, rapaz? Dar dinheiro? Não! Já disse.
Raimundo sofreou um movimento de cólera, trincou o beiço grosso e pôs-se a andar de um lado para outro como uma fera em jaula, furando a terra úmida com o ferrão do cajado. Dina, indiferente, ergueu-se e, de costas para o filho, começou a fazer molhos de inhame para carregá-los.
Raimundo, que desconfiava que ela trazia sempre o dinheiro consigo, ficou a examiná-la, procurando descobrir o esconderijo da fortuna tão avidamente desejada, quando viu uma pequena bolsa que lhe pendia do pescoço, presa por um cordel. Mirou-a muito com olhar cobiçoso e, não podendo furtar-se à ânsia que o dominava, atirou-se à velha de chofre, num bote de tigre e, rápido, dando repetidos empuxões ao cordel, rebentou-o violentamente. A negra soltou um grito e, com uma volta brusca, agarrou-se às pernas do filho, mordendo com as gengivas, rosnando rouca e em fúria: "Larga, ladrão! Larga, ladrão!"
Raimundo debatia-se procurando libertar-se, com a bolsa sempre fechada na mão com medo de perdê-la: "Sai! Sai!" E sacudia-se na pressão nervosa dos dois braços maternos que o mantinham inerte, como num tronco de ferro. Num impulso mais forte conseguiu safar uma perna e, alucinado, em ódio, atirou um pontapé que apanhou a negra em pleno peito, arrancando-lhe um gemido profundo.
Ela ainda ergueu-se tonta, ele, porém, recuando, ergueu o ipê e vibrou uma bordoada em cheio no crânio nu, porque a trunfa6, que se desenrolara durante a luta, deixara-o descoberto.
O corpo abateu com estremecimentos. Num arranco, num impulso de vida, quase se ajoelhou, mas vergou de novo até a borda do pântano e rolou mergulhando na água verde e turva onde as jias afundaram.
Raimundo deitara a correr aterrado, mas, numa angústia suprema, voltou-se e quis ver: borbulhas de sangue subiam à tona da água, o corpo, meio em mergulho, meio em terra, inteiriçara-se, as pernas nuas, esqueléticas, tremiam na erva e um braço hirto, fugindo de entre as folhas aquáticas, agitava uma mão seca, espalmada, com os dedos apartados, a tremerem também, lançando ao ar mudo e à consciência do assassino uma sentença ou um perdão piedoso.
Não pôde olhar mais. Fugiu para junto dos bois e no verde campo, na paz singela e bucólica, quebrada pelo vagaroso e surdo mugir de algum touro, examinou o seu roubo — era um escapulário, continha rezas. De raiva, então, ou com remorso, desatou a chorar com a cabeça entalada entre os joelhos enquanto os carreiros cruzavam as estradas longínquas pondo na monótona e inquebrantável tranquilidade meridiana, toadas sentimentais de cantilenas7.
O crime foi atribuído aos ciganos - horda nômade que infestava o sertão saqueando os paióis e os currais, assaltando as cabanas e até roubando crianças para malefícios, como diziam os caboclos.
Ele mesmo retirou o corpo da água, não sem tremer ao dar com os olhos na fratura do crânio da velha, muito aberta, de onde escorria uma pasta mole, brancacenta, com estrias de sangue. Enterrou-a junto do pântano, floriu o túmulo à maneira indígena e fincou com suas próprias mãos a triste cruz da saudade. Mas nunca! Nunca mais pôde esquecer o gesto da morta que lhe ficou na lembrança sempre, como uma praga vingadora que ela não pudera soltar porque a água verde enchera logo sua boca raivosa. E nunca conseguiu saber que vingança a velha negra pedira aos céus e a Deus naquele gesto hirto, exalando, ao coaxar dos sapos verdes, com a boca nas raízes das ervas podres, a sua alma supliciada pela maternidade e pela escravidão.
Continua…
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